top of page

A performance
tem começo,
meio e fim

Fernando Hermógenes

Performance: A língua sempre se dobra diante do inquestionável ou maldito – Livro-performance, Capítulo VI

Rubiane Maia

País: Brasil (Caratinga - MG)

Evento: 35ª Bienal de São Paulo – coreografias do impossível

Local: Auditório do Pavilhão Ciccillo Matarazzo, Parque Ibirapuera, São Paulo-SP, Brasil

 

Assistida em 8 de setembro de 2023.

FICHA TÉCNICA

Concepção : Rubiane Maia

Leitora Colaboradora: Jamile Cazumbá


 

Performance comissionada para a 35ª Bienal de São Paulo – coreografias do impossível, com apresentação única em 8 de setembro de 2023, sexta-feira, 14h30. A 35ª Bienal de São Paulo – coreografias do impossível tem curadoria assinada por Grada Kilomba, Diane Lima, Hélio Menezes e Manuel Borja-Villel.

 

Rubiane Maia é mineira de Caratinga e atualmente trabalha em Vitória-ES e Folkestone, Reino Unido. Você pode conhecer mais sobre o trabalho da artista, acessando os seguintes sites: 

https://www.rubianemaia.com/ e https://www.projetodivisa.com/ .

O fim

Eu chorava. A performance de Rubiane Maia, A língua sempre se dobra diante do inquestionável ou maldito – Livro-performance Capítulo VI, apresentada na 35ª Bienal de São Paulo, caminhou pelas estradas do meu interior durante as duas horas da ação – e ainda hoje se movimenta por aqui. Enquanto ouvia os passos daquela voz, eu visitava passados e conteúdos na própria memória e, com um olhar menos rígido, contemplava. Não entrei sozinho, e sim segurando as mãos da artista, que decidiu não esconder, nem regredir, ao contrário expôs o que lembrou de si. Agora é fim. Agora alcancei, com as mãos dadas às dela, a parede. A Parede Primal. A parede que contém os registros dos desastres a partir de dois mil e vinte, também conectados a eventos, dores e violências ancestrais, o ano da pandemia, o ano da terrível depressão, da nova paixão, das caminhadas diárias que duravam seis horas, dos remédios, da anorexia.

O ano da fuga.

REGISTRO 4.png
Capturei a sombra do observador. A sombra humana ao lado da sombra do banco de madeira usado pela performer na ação. A imagem define o que vivemos ali: um atravessamento. Cada palavra do texto de Rubiane Maia atravessava nossos corpos e tocava nossas próprias histórias. Créditos do autor. 

O começo

A performance tem começo, meio e fim – é com esta declaração que a ação de Rubiane Maia é anunciada. Somos também informados de que não é permitido fotografar, o que traz um alívio: não preciso tirar foto para alimentar as redes virtuais, não vou tocar o celular neste espaço, a ação será apreciada com toda a atenção. A performance tem duração prevista de duas horas. Se precisarmos sair, apenas uma das duas portas do auditório estará aberta. E, então, uma pausa. Aquele momento entre “anunciamos o que precisava ser anunciado” e “agora é a hora da performance”. A pausa, vestida de silêncio e três corpos em cena parados, situa-nos. Jamile Cazumbá, leitora colaboradora, em pé com os pés enfiados num monte de terra, lendo ao microfone, vestindo um macacão na cor ocre. Rubiane Maia, sentada num banco pequeno de madeira dentro de uma plataforma quadrada, cercada por um filete de vidro e preenchida com água, barro e grãos de arroz, também vestindo um macacão ocre e, na cabeça, tranças compridas feitas com fios do próprio cabelo, coletados por meses. O terceiro corpo é a intérprete de LIBRAS, sentada num banco pequeno de alumínio, no canto, vestindo um conjunto preto, os pés no chão. Passo a pensar que tenho uma apresentação de duas horas pela frente. Faço uma pergunta: qual foi a última vez em que tive tal qualidade de atenção dedicada a uma performance, apresentação, evento artístico? E, então, a língua de Jamile Cazumbá começa a palavrar o texto que as mãos de Rubiane Maia escreveram. Atenção.

Resquício da performance A língua se dobra diante do inquestionável ou maldito, 2023, Rubiane Maia. Créditos do autor. 

O meio

A caminhada. Entre a proclamação – a voz, a vóóózzzzz, aaahhh – de Jamile Cazumbá e o corpo de Rubiane, uma caminhada pelos cabelos trançados das pessoas negras escravizadas que, pelas tranças-mapas em suas cabeças, conseguiam localizar quilombos, planejar fugas, situar recursos, carregar provisões, enquanto era-lhes proibido usar a língua. As tranças reuniam pessoas, transmitiam mensagens, carregavam códigos, manifestavam a cultura: trança = língua = fala. Por vezes, sementes eram colocadas nessas tranças para que, chegando ao lugar desejado ou possível, o povo pudesse plantar, cuidar e comer, fortalecer a língua. Durante a performance, Rubiane insere os grãos de arroz alternando entre suas tranças e a boca, pintando a língua, os dentes, os lábios e o rosto com o barro. Quantos grãos caberão na sua boca? Qual o gosto desse barro na sua língua? Será que desce ao estômago? Cada grão, um ponto da história ora resgatada, ora questionada, ora vivida por Rubiane. Estamos caminhando com ela por trajetos que, diferentemente do programa anunciado, antes da ação, não estão dispostos com inícios e chegadas ocidentalmente lógicos – o texto faz curvas, trança, borda, abraça e solta, tem seus tempos de acordo com as próprias regras; e nós, que ouvimos, apreendemos os sentidos. Quilombo, infâncias, fome, origens, sonhos, narrativas, lágrimas, migrações, dor, traumas, terra, intimidades, escravidão, maldições, maternidade, viagens, alimento, racismo – situações que a artista vai retirando, com cuidado exemplar, de um baú ao mesmo tempo particular e coletivo. Ela transita pelos lugares que precisa, como água livre, água em vários estados físicos ao mesmo tempo.  Seu texto e palavra navegam, balançando por ondas imensas; já conhecem o abismo. Suas palavras estão vindo de lá, de elaborações profundas de si a rápidos apontamentos relacionados com os eventos que a afetam por ser mulher preta, mãe, artista, imigrante.

Rubiane se agacha. Escorada no banco de madeira, faz um bolo com barro e grãos de arroz. Alguns dos grãos foram retirados da sua boca, hidratados pela saliva da sua língua, separados pelos dedos, entre os dentes e gengiva; outros, coletados de um prato de vidro dentro do tablado. A imagem de uma mulher adulta com barro nas mãos, dedicada ao seu montinho de terra, surge lembrando o nosso começo – a infância. Entre o fim e o começo, o meio. Foi no meio que encontrei Rubiane Maia, e o meio era o início de mim. Dei a ela minhas mãos e compreendi, descansando, que não precisava mais fugir.

Após a performance, passamos uns bons minutos em volta do tablado de madeira e vidro, capturados pelo resquício. Um prato de vidro com sementes de arroz, um banco de madeira com um pequeno bolinho composto da mistura de arroz com barro e mudas de arroz na bandeja preta. A maioria das pessoas tocaram na água e no barro. Algumas pinçaram, com os dedos, grãos de arroz para observar na palma da mão. Outras caminhavam em volta do tablado e fotografavam. Créditos do autor. 
bottom of page