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Equilibra sua criança na cabeça pra dignidade sorrir 

Deise de Brito

O regresso para avançar

Exposição: Afrofuturismos - tecno-poéticas ancestrales del porvernir

 

Várias pessoas artistas afro-equatorianas

 

País : Equador ( Quito )

 

Percebida em novembro e dezembro  de 2024

 

​Local: Centro de Arte Contemporânea de Quito

 

Período de exibição: 23 de outubro de 2024 a 23 de fevereiro de 2025

 

 

FICHA TÉCNICA

Curadoria e Pesquisa: Anthony Guerrero e Yuliana Ortiz

Artistes Convidades e Pesquisa: Kristel Ortiz, Sergio Rosado, Lindberg Valencia, Kevin Santos, Danely Aguas, Katherin Guerrero, Linda Mina, Shaskya Hurtado Zambrano, Alexis Mina y Siomara Quiñónez.

A exposição e pesquisa foi fruto de  um convite realizado pelo Centro de Arte Contemporânea  a Anthony Guerrero e Yuliana Ortiz e contou com o suporte e  envolvimentos das seguintes organizações : Afrocomunicaciones, Casa Ochún , Secretaria de Cultura, Prefeitura Municipal de Quito , Fundación Museos de la Ciudad.

Sou amante da convicção de que o cotidiano é ancestral.

Gosto da ideia oeste-africana iorubana que escolhemos a cabeça que iremos viver, antes de iniciar a nossa dança aqui no mundo visível. Gosto muito de saber que a minha jornada é praticar o meu sentir, para tentar lembrar dessa escolha. Apaixono-me cada vez mais pelo fato de que, em outras temporalidades - do agora de ontem e no presente de depois - já elegemos o tal do propósito detalhadamente. Tenho afeto na crença de que não há certas coincidências, por isso abraço a criança que me ocupa nesse travessurar de cada curva da estrada de ser nômade, que me move em sensações de suficiência contínuas e viciantes, confesso.

A partir disso, conto que, quando estava em Montevidéu, no Uruguai, em abril de 2024, decidi fazer o curso autoformativo online “Percursos em Produção Cultural – Políticas Culturais na América Latina”, oferecido gratuitamente pela plataforma da Fundação Itaú Cultural. Na aula 2, a Dra. María Paulina Soto Labbé ( Chile) compartilha uma entrevista-depoimento, realizada com a escritora equatoriana, Yuliana Ortiz, nascida no norte de Esmeraldas e que se identifica com a “negritude dos palenques, que no Brasil seria como os quilombolas”. Naquele momento, Ortiz, segundo as próprias palavras, realizava “pesquisas sobre a exclusão cartográfica como gatilho ou detonador de processos criativos e investigativos”.   

Neste prosseguimento, identifiquei-me com a forma como Yuliana  se relacionava com a criação na escrita, além da reação de suspensão do meu imaginário que, raramente ou quase nunca, teve acesso às narrativas acerca de pessoas negras no Equador. Assim, a experiência de ler o depoimento de  Yuliana me fez querer conhecer aquele país, cuja geografia confluiu com o meu encantamento por vulcões.

Após concluir o curso, continuei o meu caminhar dentro do Uruguai, depois  Argentina, Brasil de novo; e, então,  Colômbia.  Neste último território, senti que era o momento de conhecer o vulcânico Equador,  e a lembrança de ter conhecido o trabalho de Yuliana Ortiz, através daquele curso, funcionou como uma força mediadora no percurso que se iniciaria em Quito.

Já nessa cidade, em novembro de 2024,  escarafunchando narrativas negras na Arte e em lugares históricos, tomo conhecimento da exposição Afrofuturismos – tecno-poéticas ancestrales del porvenir, que tinha a curadoria do escritor e ativista equatoriano , Anthony Guerrero e de Yuliana , a escritora equatoriana, cujo relato teria me nutrido a vontade de conhecer o Equador e suas negritudes. Ortiz, naquela ocasião,  estava no Brasil, para participar da Festa Literária das Periferias (FLUP), na cidade do Rio de Janeiro, e para  lançar seu livro “Febre de Carnaval”, pela editora Bazar do Tempo.  Mas o curioso é que só tive conhecimento de que ela era uma das curadoras do trabalho, no mesmo momento em que conheci a exposição.

Por essa e outras razões gosto da ideia de que não há certas coincidências no cotidiano ancestral e que os encontros já são sessões pré-agendadas nas dobras do tempo.

A exposição Afrofuturismos ficou em cartaz, entre 23 de outubro de 2024 e 23 de fevereiro de 2025, no Centro de Arte Contemporânea de Quito (CAC), alocado num prédio histórico e emblemático da cidade – o antigo Hospital Militar -  que reúne uma variedade de atrações artísticas, a partir do pensamento contemporâneo em Arte, e eventos - além de ser espaço para  feiras de livro e artesanatos, reuniões, circuitos de brincar, salas  de leitura, minibibliotecas, performances cênicas musicais e ocupações insurgentes, como de artistes negres e LBTQIAPN+, dedicadas a mobilizar novas possibilidades de futuro.

Impossível relatar a minha experiência na exposição, sem tecer conexões com a minha vivência em Quito, terra  guardada por vulcões que me sintonizou na minha frequência solar, mesmo com as baixas temperaturas. Devido à pior seca, em mais de 60 anos, ocasionada pelas irresponsabilidades humano-capitalistas, em contexto planetário,  e pela imprudência e meneios suspeitos do governo, em relação à política de geração de energia, estávamos em épocas de apagões elétricos (administrados pelo Estado), que ressoaram também nos espaços culturais da cidade, os quais precisaram reorganizar e reduzir os horários de funcionamento de suas atividades.

Assim, a primeira vez em que fui ao CAC conheci algumas das suas acomodações, mas não a exposição - naquele momento, temporariamente fechada para o público. Ao retornar em um outro dia, consegui senti-la como uma oferenda, destinada a criar coreografias doces no meu imaginário, por não me recordar, desde a infância, ter escutado qualquer menção ou visto situações relacionadas às comunidades negras equatorianas que não tivessem sido por intermédio do futebol; e relato isso, sem qualquer tipo de demérito a esse esporte e às pessoas que o praticam, especialmente as negras.

O equilíbrio

Como uma menina, que atravessava um portal esplêndido de possibilidades, eu me encontrei com a exposição performando meu jogo com o conhecimento de uma parte do dinâmico mundo negro equatoriano.  Dancei com a traquinagem, para conhecer as duas salas que a exibição propôs em versos, que configuraram um diálogo entre a temperança do invisível  e as urgências pelas visibilidades de si, em tons de dignidade. Nesta meta orgânica – que a exposição já injetava na minha veia –  segui escutando, através das materialidades expostas, as pesquisas de Yuliana Ortiz e Anthony Guerrero:

Afrofuturismos avizora una pulsión supranacional, um anima, mítico que se alimenta de estrellas , um ser policéfalo que bebe el porvenir con sed insaciable. Se despliega, se ficciona, y sobrevive el caos del presente, delirando cuerpos negros em futuros insospechados a pesar de todo. Este organismo de deseo nace de diálogos profundos que Anthony y yo hemos mantenido com sabias y sábios : académicos, artistas, escritores, mùsicos, creadores plásticos y membros de las comunidades afrodescendientes de Ecuador. Son ellas y ellos quienes com su hacer y su resistência incansable han trazado espacios de re-existência para nosotras.  (Yuliana Ortiz - Fragmento de texto de parede na Exposição)

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Yuliana Ortiz e Anthony Guerrero . Curadores da Exposição Afrofuturismos. Fonte: web e arquivo pessoal

A partir da rota proposta pela curadoria, sorri com meus pés, em cada espaço pisado. A primeira sala reunia obras de pessoas criadoras, cujas fabulações visuais apresentavam-se, criticamente, a partir de  04 diferentes vias: a pintura, a ilustração,  a fotografia e a instalação  que, em conjunto,  permitiam um quinto caminho , a perform – atividade de quem aprecia e come aqueles sonhos possíveis. Visto que, para permitir que a proposição dessa primeira sala me sentisse,  eu não somente caminhei dentro dela, mas também girei minha percepção em 360º, assim como  cheguei mais perto do desejo de cada artista, decantei as minúcias de cada obra, degustei o todo e  entendi por que a grande boca (Exú ) faz questão de tudo comer.

Não era uma exposição de objetos e obras acumuladas, como pressupõe um arquivo colonial, preso em suas ficções arrogantes, pelo contrário, ali o menos era mais, porque deixar espaços para perguntas e dúvidas era uma premissa da responsabilidade com o conhecimento.  A sobremesa do ato de saber.

E, na fissura que formatou o “entre” aquelas criações, percebi que, nessa primeira sala “degustativa”, continha uma espécie de circularidade que forjava o equilíbrio na   conexão, entre a criança e a mais velha, suscitações presentificadas, por exemplo,  na série “Sincretismo Afrodescendente” de Alex Mina , na obra “Equilíbrio” de Linda Mina e no quadro “Pra não Esquecer – Encontro com Maria Auxiliadora” de Shakysa Furtado. Momentos da exposição, nos quais a cruza da sabedoria da criança com a aura travessa da mais velha pareciam desobedecer a ordem da verdade que reduz  a nossa complexa existência; lembro-me do que Sobonfu Somé diz no livro,  “Acolhendo o Espírito” , a partir da sua vivência como Dagara em Burkina Faso:

É esta proximidade e relação com o mundo dos antepassados e com o espírito que torna os netos e avós únicos e especiais, porque o neto acaba de chegar daquele mundo e os avós se preparam para regressar a ele. (Editora Filhos da África, 2023: 62)

Esse mundo, citado por Somé, é também o ancestral que efetua radiações e nos ajuda a não temer o futuro, inclusive aquele no agora de Afrofuturismos.

Sala 1 da Exposição Afrofuturismos com obras de diversos artistes negres do Equador.  Foto de Deise de Brito. 2024.

Obra “Equilíbrio”(2023) da série Tecnologias da Ancestralidade de Linda Mina. Foto de Deise de Brito. 2024

A ferramenta que forja

Na segunda sala, acontecia o amalgamento entre as mostras Bohío fotográfico de mujeres cimarronas’ e Tambores de la diáspora, ambas com documentos fotográficos e tambores  pertencente às coleções da Casa Ochún,  importante organização cultural para a memória e artes negras equatorianas.

Nesta segunda instância expositiva, uma rica projeção de imagens de pessoas  em cortinas, pelas quais se podia ver, em dobras, o brincar da presença, entre a luz e a sombra, em velocidades diferenciadas. Havia, ainda, em partes das paredes da sala, conjuntos fotográficos que formavam uma majestosa convenção de mulheres  importantes, na continuidade da existência afro-equatoriana, provavelmente arquivistas e artvistas fabulativas de saberes que, no corpo-rota, constroem  os próprios antídotos contra processos de dizimação, tornando-se estes, em suas finalidades,  projeto fracassados. Nenhuma imagem de dor, nessas fotografias ou em nenhum momento da exposição; pelo contrário, eram semblantes altivos, sérios, provocadores, calmos, orgulhosos, profetizantes, dignos, preenchidos e ocupados, porque não receavam a si.

Lembrei  da minha vó, Hilda Ribeiro de Brito, cuja presença e convivência, enquanto esteve no Ayê, não me remete a um sequer momento em que ela tenha se curvado à servidão emocional para algo ou alguém.  Em contrapartida,  recordo seu tronco aberto e ereto, que se dobrava para alegria e para a sabedoria do entendimento de que, no  mundo, somos travessura.  Minha vó equilibrava sempre sua criança na cabeça e se recusava a temer o que estava por vir, ela  organizava, do seu jeito, a ancestralidade no seu dia  a dia.

Ao final dessa segunda sala, numa  videografia pilarizada no carisma didático, uma aula orientada por Lindberg Valencia – artista e mestre da cultura musical afro-equatoriana -  sobre um dos patrimônios imateriais mais significativos, nas culturas do pacífico colombiano e equatoriano  - a Marimba – além de duas apresentações reais desse instrumento, em frente à obra audiovisual. Havia, também, na sequência do vídeo,  o registro de uma partilha sobre um ritual fúnebre afro-equatoriano compartilhando a ideia de ciclos contínuos, entre os planos visíveis e invisíveis, borrando completamente a imposição ocidental da ideia de morte, fim e punição.

Sala 2 da Exposição Afrofuturismos com as mostras Bohío fotográfico de mujeres cimarronas e Tambores de la diáspora. Foto de Deise de Brito. 2024.

Exposição: Afrofuturismos – tecno-poéticas ancestrales del porvenir carrega no seu título o prefixo Afro, comprovando a dimensão enigmática do seu significante que, naquele contexto, respira ritos em diálogo com magmas vulcânicos e energias mareadas do pacífico ; foge de qualquer raiz norteamericanizadabranca designada para o conceito afrofuturista; desvia para irromper, na imaginação, a continuidade de novos futuros nas comunidades negras equatorianas, ao ensinar que o primeiro passo a ser dado é o do sonho, e o caminho, ancorado no pensamento de Beatriz do Nascimento – brilhantemente citada pelo texto da curadoria – é o convite à fuga, o escape para aquilo que o cotidiano ancestral nos acerta e nos diz :

– Estamos. E nossas teclas criativas são incapturáveis. 

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