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Espaços-tempo
transitáveis

Mainá Santana

Espetáculo: Tempo

Inaê Moreira

País: Brasil (Salvador-BA)

Data: setembro de 2018

Local: Centro de Referência da Dança da Cidade de São Paulo (São Paulo - SP)

FICHA TÉCNICA

Criação e performance: Inaê Moreira

Assistência de Direção: João Calixto

Criação Sonora: bella

Criação de luz: Carol Costa

Registro Fotográfico: Isabel Scorza

Colaboração Artística: Musa Michele Mattiuzzi e Esteban Esquivel

Espetáculo produzido com recursos próprios. Após gravação independente, foi vendido para o SESC Pompéia e, na segunda semana de fevereiro/2021, para o Festival de Audiovisual de Salvador, para exibição online. 

Ao entrar no espaço cênico, o cheiro de areia toma as narinas. O público entra, escolhe seu lugar sobre o linóleo, circulando a luz que se projeta do teto, focal, sobre o monte de terra, somada a uma leve contraluz 1. Rapidamente sou transportada a uma memória, um flash entre o sonho e a realidade, em que meus quatro anos encontram-se no colo de um adulto, e uma tia chora a perda de seu filho para o tráfico. Minha corpa nunca esteve nesse velório, mas sei que a renda preta cobre o rosto daquela mãe, inchado, velas por todo o lugar, enquanto a avó a consola, triste, porém com a firmeza de quem também já teve de enterrar alguns de seus filhos.

Dança-performance  Tempo, Centro de Refe

Dança-performance Tempo. Centro de Referência da Dança da Cidade de São Paulo, 2018.
Foto de Isabel Scorza.

Até hoje não posso contar ao certo se foi a imagem, o cheiro ou o silêncio das pessoas sentadas, cúmplices, que me tomou de sobressalto a esse espaço-tempo não visitado. Lentamente, passo a escutar o mover da areia. Não vem da imagem que vejo, mas das caixas de som do Centro de Referência da Dança da Cidade de São Paulo, antigo prédio da Escola de Bailados do município. Eu apreciava o espetáculo Tempo com a cabeça apoiada nas paredes onde, anos antes, havia barras para aulas de balé. O espaço cênico onde a soteropolitana Inaê Moreira apresentava seu trabalho também nos conta histórias sob as estruturas 2.

Inaê Moreira em Tempo, Centro de Referên

Inaê Moreira em Tempo. Centro de Referência da Dança da Cidade de São Paulo, 2018.
Foto de Isabel Scorza.

A ação é simples, desenterrar-se. E qualquer pessoa que tenha corpo compreende o inóspito e a intensidade de estar soterrada por tantos minutos. Em algum momento, deparei com questões como “qual a diferença entre a vida e a morte?”, “por quanto tempo suportamos estar em situações limítrofes?”. Quis levantar e ajudá-la a sair dali; respirei fundo e compreendi que ela contava com forças e ferramentas que não me envolviam na ação. Por que eu, artista, performer, senti esse ímpeto de usar minhas mãos e transformar aquela ação em uma ação coletiva? Deixo a pergunta a você que me lê; entretanto, olhando em retrospectiva, percebo que algo na concepção de Inaê me abriu tal campo de sensibilidade. 

Inadvertida e imersa em minhas memórias, demorei a compreender que assistia também a um renascimento. Naquele fim de 2018, uma mulher preta saía da areia, com a delicadeza e simplicidade de um espetáculo que, por meio de uma ação precisa, evoca o imaginário, o ancestral e a memória, mas também a transformação. O espaço de uma corpa enterrada, vagarosamente se modifica, tudo se desloca a partir do seu mover-se. Tenho a sensação de um mar distante, de outras areias, para onde, talvez, essa mulher retorne. É também por sua corpa que outras histórias são reveladas e transportadas de um espaço a outro, em um rito de passagem.

Inaê paria-se e era parida pela terra. Em Tempo, a mulher respira em um soterramento, move tórax, quadris, braços e pernas para encontrar o ar de um mundo que não sei precisar qual é. Pode ser o real ou o intangível, durante um tempo dilatado, que nos oferece espaço para grandes curas internas. Seria realmente uma mulher? Uma ancestral, uma orixalidade ou uma presença que muda sua forma, de areia para humana? Seria a responsável por um portal de nascimento e de morte? A inteligência desse espetáculo passa pela abertura para grandes campos de dúvidas e certezas junto ao público.

Já tomada de ar, a corpa de Inaê Moreira agiganta-se, a partir de uma luz frontal que projeta sua sombra na parede preta.

Curvada, vagarosamente atinge a verticalidade, trazendo imagens de avós, senhoras do tempo e guardiãs das histórias dos que já se foram. Uma dança para dilatar o tempo ao contar fisicamente sobre os guardados, enterrados a sete chaves, e que, no entanto, retornam de suas profundezas. Nada fica escondido. Durante todo o trabalho, a sensibilidade e a presença cênica de bella, cujas mãos coreografam sons, ao escorrerem punhados de areia junto ao microfone, constantemente. E a trilha sonora está, é viva.

Adiciona-se à técnica a leveza das mãos de Jackson Oliveira na operação de luz, construindo uma ambiência harmoniosa, de modo a permitir ao público uma navegação suave de uma cena a outra.

Grãos de areia e cabelos trançados são lançados para trás, revelando o rosto da intérprete. Curiosamente, seu rosto aproxima-se da expressão de minha avó, durante o enterro do neto. É cheio de sentimentos, revivências de dores, porém firme e decidido – aquela mulher sabe que deve ir, mesmo que não saiba para onde. Seu rosto traz a confiança acolhedora do choro de outras e, também, do próprio, como se ocorrido em outro tempo. Com as vestes pretas e cheias de areia, caminha para encontrar a sombra de si e tornar-se de seu tamanho. Com o blackout, o público despede-se de uma grande intérprete e criadora.

Inaê é, sem dúvida, uma grande curandeira.

Âncora 1
Âncora 2

1 Contraluz é a luz posicionada atrás de um objeto ou pessoa para que possamos ter a sensação de volume, delimitando um contorno. Quando muito forte e sem outras luzes auxiliares, realça apenas o contorno, como quando tiramos uma foto de costas para o sol e não conseguimos ver nosso rosto na imagem. Nesse caso, os limites da areia ficavam mais visíveis e, com a ajuda de uma fonte de luz vinda de cima do monte, era possível ver toda a cena com nitidez e profundidade.

2 A realização desse espetáculo-performance, no espaço onde funcionara a antiga Escola Municipal de Bailado (hoje Escola de Dança de São Paulo), torna-o ainda mais significativo. Importante centro de educação em dança, desde a década de 1940, também foi local de histórias enterradas, de silenciamentos de corpas e estéticas negras, no coração do Vale do Anhangabaú. Hoje, o prédio é espaço de renascimento cultural, de apropriação de pessoas negras sobre suas corpas, por meio de estéticas plurais – um local cuja ocupação fora antes restrita à disciplina das subjetividades. Em seu livro, Marilena Ansaldi, artista da cena de grande expressividade, relata perseguições durante a ditadura, trocas de direção alinhadas com o regime para a produção de bailarines, para usar termos atuais, “não ideologizados”, chegando ao fechamento da escola pelo município. Algo se reconta quando, sob a direção de Priscila Yokoi, no mesmo ano da apresentação de Tempo, a escola retoma o nome Escola Municipal de Bailado – já em outra locação – e é acusada de racismo por um grupo de mães de alunas negras. Houve relatos de separação entre crianças brancas e negras na barra de balé, além da finalização dos cursos livres de danças brasileiras na Praça das Artes. Felizmente, no momento em que escrevo, a escola, que voltou a se chamar Escola de Dança de São Paulo, está sob outra direção.

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