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Esquina-Esquiva-Esquerda

Deise de Brito

Espetáculo:  Esquina

Fragmento Urbano

País: Brasil (São Paulo - SP)

Data: 02 de novembro de 2019

Local: Sesc Bom Retiro (São Paulo - SP)

Evento: “As Semanas que Dançam:  Corpos Negros – Diálogos Diaspóricos”

FICHA TÉCNICA

Direção: Douglas Iesus

Co-Direção: Anelise Mayumi

Elenco: Cic Morais, Douglas Iesus, Eduardo Dialético, Ivamar Santos, Melvin Santhana, Thiago Sonho

Direção Musical: Melvin Santhana e Thiago Sonho

Direção de Luz: Cic Morais

Visagismo: Gil Oliveira

Provocador: Roger Cipó

Social Mídia: Alice Soares

Costura: Denise Guilherme

Produção: Iolanda Costa

Obra montada com recursos próprios do Fragmento Urbano. (Informação fornecida pelo grupo)

Quem é de Asé sabe o quão as energias das esquinas emergem nos corpos daqueles que elas namoram. A poesia cabe na realidade, e a realeza preenche criação. É o DITO, é o VISTO, é o ANDARILHO, é o suspeito. As encruzas apadrinham mestres que, por sua vez, iniciam meninos na arte de saber ler o total de esquivas que utilizarão na vida, por exemplo. O Fragmento Urbano, grupo conhecido por eleger a rua como seu palco e substância de criação, revela no espetáculo Esquina o desejo de abordar relações atravessadas pelas fórmulas violadoras que a masculinidade desdobra. São memórias re-vividas.

Do lado de fora do SESC Bom Retiro, sou entremeada por um jogo brincado entre cinco homens de idades diversas. O cheiro de fumaça de um fogareiro aceso remete ao meu avô Manoel. Ele, que era vendedor de carvão, tinha como ritual tomar banho quente à noite, numa Salvador acima de 30 graus. Aquilo nunca me intrigou e não sentia necessidade de perguntar: “por que banho quente, Vô?”. Minha mãe costuma relatar que era uma estratégia para economizar o gás do botijão, já que não tínhamos o luxo do chuveiro elétrico na época.

Assim, apenas assistia aos meus irmãos mais velhos revezando-se diariamente na preparação do fogareiro para aquecer a água. E eles a faziam, com respeito e dedicação. Não importava se a brincadeira estava ficando melhor, se o time no qual jogavam estava perdendo ou se o esconde-esconde era mais interessante. Cada um, em seu respectivo dia, interrompia a tarefa em execução e ia com disposição separar o carvão, o fósforo e encher a panela d´água. Talvez tenha sido esse um dos meus primeiros exemplos de respeito aos que chegaram antes.

Melvin Santana

Eu luto com as armas que o orum me dá. Laroyê. Exu. Mojubá

A proposta de Esquina parece apresentar uma escala de desbravação-provocação de masculinidades cis, elaboradas sob contínuos ritos sociais que atravessam as pessoas, especificamente o homem negro. Por outro lado, afirma também (re)elaborações de resistência; e, nesse sentido, argumenta de forma encenada que os bailes, as danças e as músicas negras são envoltórios constituídos de acolhimento – quero dizer, universidades de jeitos de corpos, e não só de um jeito de corpo – que florescem conhecimentos e curas.

Um duo-tango-samba e, em outro momento, a batalha de percussão evocam relações de afeto, homem a homem, ornamentado pelo figurino e as joias de Gil Oliveira. Nesse lugar, o meu mover mental é visitado por imagens de algumas comunidades centro-africanas e oeste africanas que cultivam o valor do brilho das joias como recurso ancestral para poesia e luminosidade.

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Elenco de Esquina. Ivamar Santos (de costas) e em ordem descrescente da linha: Douglas Iesus, Eduardo Dialético, Melvin Santhana e Thiago Sonho. Foto de Daniel Carvalho.

Por outro lado, essas passagens cênicas demonstram também a fragilidade silenciada-vivida, entre discursos corporais de afeto e coreografias reais de violência. É o masculino patriarcal do qual eles querem se despir. Que dever árduo! Através das corporalidades cênicas heterogêneas e desiguais dos intérpretes, isso é evidenciado. Há uma discrepância de preparação dentro do grupo e a frágil organização cênica potencializa isso.

Observo as performances dos joelhos de cada artista e (re)leio a importância da flexibilidade dessa sessão do corpo. A maior parte do coletivo resiste a dobrá-los cedendo à rigidez. Arrisco dizer que isso materializa corporalmente as batalhas de si para desconstruir os versos duros de um texto social injusto, reservado aos jovens, senhores e meninos negros.

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Elenco de Esquina. De costas: Eduardo Dialético (direita) e Douglas Iesus (esquerda). De frente: Ivamar Santos e Cic Morais. Foto de Noelia Nájera.

Se a proposta do trabalho é trazer à cena “homens negros de periferias e seus ritos de passagem e iniciação, abordando as contradições nesse universo”, isto ainda é uma ideia não concretizada nas pessoas que protagonizam o espetáculo. Tal situação estende-se ao modo de concebê-lo.

Quantos passos teremos que retornar para nos desconstruir num ritmo que siga a saúde das nossas “casas-corpos”? Quantas danças de si precisarão ser (re)elaboradas ou implodidas?

 

Em esquivas, o Fragmento Urbano, apesar das carências do Esquina, sugere uma tentativa na contramão, em direção a uma esquerda que lhe guarda. E chegaremos lá.

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