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O Festival de Música del Pacífico Petronio Álvarez começa com a performance de Inteligência

Deise de Brito

Evento: 28º Festival de Música del Pacífico Petronio Álvarez

Várias pessoas artistas, performers e fazedoras de tradições populares da região do pacífico colombiano

País: Colômbia (Cali – Valle del Cauca)

Período que viveu o evento: 14 a 19 de agosto de 2024.

Local: Unidad Deportiva Alberto Galindo ( Cali - CO)

Período do evento: 14 a 19 de agosto de 2024.

 

O evento conta com o apoio do Governo da Colômbia e de diversas entidades. E é organizado pela Prefeitura de Cali que contou com a parceria também da COP 16 – Conferência das Nações Unidas sobre a Biodiversidade.

A Negritude não é uma metafísica. A Negritude não é uma pretensiosa concepção do universo. É uma maneira de viver a história dentro da história (...)

 

(Aimé Césaire, 1987)

Inicio num por último ocorrido, no Aeroporto Internacional Alfonso Bonilla Aragón, localizado na cidade de Palmira, no Estado colombiano Valle del Cauca. Eu aguardava, numa sala próxima ao portão de embarque, o voo para o meu próximo destino dentro da Colômbia, após oito dias intensos em Cali: cinco dias deles vividos no XXVIII Festival de Música del Pacífico Petronio Álvarez, motivo (não sei se o eixo) desse trajeto. 

Naquele momento, misturava-se tudo que eu tinha presenciado no festival e o que ele tinha percebido em mim; a intenção de retornar a Cali, para ficar um tempo mais longo, no intuito de sentir mais a cidade e as pessoas (e assim o fiz); e o ódio construído na raiva, por ter de pagar um adicional de bagagem para uma empresa aérea naquele momento, já que o preço “básico” do bilhete comprado antecipadamente só permitia o transporte de uma bolsa ou mochila pequena que coubesse embaixo do assento à frente do qual eu iria me acomodar, ou melhor àquela altura me des-acomodar.

Caso você não seja radicalmente minimalista e carregue outros itens, em uma bagagem de mão, tem de pagar adicional. Essa é uma das “gentilezas” dos grandes magnatas das empresas aéreas, para quem precisa ou deseja viajar fazendo o uso do avião. “Mimos” para corpos que ofertam ruídos, cujos deslocamentos não são apenas fatos, mas também des-tratos de um pacto firmado por um grupo que não descansa da obsessão pelo controle que acumula lucros.

Melhor dizendo, estar fortemente em curso, não apenas na Colômbia, mas também em vários países, o hábito da medição da mochila menor, da bagagem de mão, antes do embarque aéreo, além de não ser mais tão incomum, o serviço de bordo ser vendido também. Por conseguinte, é provável que num futuro breve precisaremos pagar pela quantidade de acessórios que usamos no corpo. Afinal de contas, os preços das passagens áreas e todos os custos gastos nos aeroportos são bem “econômicos”, sim? Não há motivo para alardes e contestações.

Envolvida nessa circunstância, eu já estava na fila para embarcar, após ter minha mochila pequena medida e a minha outra mochila de 50 litros já interceptada para pagamento, quando percebi uma insurgência inspiradora e que me ensinou, didaticamente, como organizar a raiva de forma silenciosa – e escandalosa ao mesmo tempo.

Havia uma mulher negra, aparentando mais ou menos trinta anos, acompanhada de uma criança negra, que parecia ser sua cria e ter 04 ou 05 anos. Não identifiquei de qual lugar da diáspora elas eram, tampouco soube seus nomes, assim vou nomear a moça, nesse trajeto, de Inteligência.

Inteligência retirava roupas de uma das suas mochilas vestindo-as por cima daquelas que já estavam no seu corpo. Ela estava focada, seus gestos e movimentos eram certeiros: remexer, selecionar, retirar, vestir, in-corpo-ar. Performance que, a cada segundo, começava a ser observada por mais pessoas que estavam na fila, que pareciam sentir ela como um ponto estranho, ridículo, patético. Nessa ocasião, eu já tinha compreendido que Inteligência também tinha tido suas bolsas e bagagem de mão medidas, contadas e, portanto, cobradas por um custo adicional, já que assim como outras pessoas e eu, na mesma situação, ela adquiriu o ticket “básico” de embarque.

No entanto, ela interrompeu uma continuidade, porque não queria (ou não tinha) como pagar, por isso começou a sobrepor roupas no seu corpo não negociando o seu controle e autodireção na firmação dele (o corpo), como estratégia para assegurar o seu direito de se deslocar livremente, sem ter de ser onerada por uma regra, estruturalmente, injusta e leviana.

Seu corpo era a sua base, seu objetivo, sentido, sua dianteira. Seu corpo era a tecnologia de acesso a uma possibilidade de chegar ao destino que ela escolheu. Seu corpo é ela e, ao mesmo tempo, seu companheiro de jornada, de anunciação de uma coragem e denúncia de um horror que a letargia, causada pelas sobremesas do capitalismo, não permitia às pessoas reconhecerem o problema.

Elas, eu, mantiveram-se na fila aguardando o embarque individual, enquanto Inteligência se mantinha no seu propósito de livre trânsito, imersa numa entidade coletiva e longínqua, que a assessorava de perto.

 

Neste seguimento, os investimentos de tecidos – que realizava nela mesma – avolumavam questionamentos, numa só performance de sobre-experiência, ela reunia, com e por meio de gestos repetidos e inéditos respiros, conduta, des-crença, fricção, des-encanto e a roupagem nobre da habilidade de não se subtrair, ao administrar objetivamente a sua indignação, ao selecionar intuitivamente o momento de ataque e recuo, criando a solução apesar de...

Num zigue-zague emblemático e lógico, o Festival de Música del Pacífico Petronio Álvarez começa com a performance de Inteligência que não é o final, mas um em-meio a laços bem dados a complicados. Eu poderia escrever a respeito do Festival Petronio, na perspectiva do perigo da cooptação dos nossos saberes por grandes marcas e mídias ... poderia tecer uma fricção, a partir da lógica e do ônus da espetacularização de certas tradições negras… poderia ousar uma análise das complexas relações raciais nas cruzas poéticas do evento... Porém me recuso a ofertar protagonismos ao centro dominatriz e desconfio da minha percepção de estrangeira, apesar de ser versada em uma negritude que é made in Abya Yala, ou seja, sou hermana, mas me reconheço íntima a distância.

Assim, rego-me pela coreoperformance da gestotude de Inteligência, porque sou en-focada pelas africanidades e cadenciada pela ideia Cèsaireana de negritude, nos entremeios dos deslocamentos de 1 ano e meio por Abyalatinaaméricayala, e aqui vou me bastar. Por evocar algo que borre, em negro, uma certa latinidade inventada, aqueço meus pés na medida que adentro territórios, com os devidos zelos.

O Festival de Música del Pacífico Petronio Álvarez é um evento que está no calendário oficial de festas da negra cidade de Cali, a capital mundial da Salsa, que ora o corpo na inquietude do movimento da Salsa Caleña e, ao mesmo tempo, no sossego e na sabedoria das negruras litorâneas que em praias, rios e florestas de territórios vizinhos, preservam – inventando o arquivo Oceano Pacífico e tudo que ele vem documentando em memória aquífera.

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Experiência lúdico pedagógica, no setor Pueblo Pacífico, sobre a Guitarreada del litoral com a professora Juana Álvarez .  Foto de Deise de Brito.

A região do pacífico colombiano compreende 83 mil quilômetros quadrados, distribuídos ao longo de quatro Estados/Departamentos: Chocó, Valle del Cauca, Cauca e Nariño. Estes são constituídos por territórios com grande contingente populacional negro, em interlocução contínua com populações nativas. Potencialmente documentais, essa gente vem construindo pensamentos de corpo, alicerçados em matrizes de movimentos, que dimensionam novas maneiras de se processarem no e com o tempo. Esses aspectos fundacionais de corpo – e como eles se configuram singularmente – não são separados de outras percepções corporais das comunidades negras brasileiras ou das de outros territórios como Arica (Chile), Montevidéu (Uruguai), Buenos Aires (Argentina) ou Fernando de La Mora (Paraguai), por exemplo. Pelo contrário, conversam de forma muito íntima sustentando-se entre si com sagacidade.  

Redundantemente, considero que a ideia de diáspora negra é tão complexa quanto a ideia de corpo negro, diversa em si mesma e, ao mesmo tempo, sustentada por uma coluna que, apesar de vértebras com qualidades anatômicas variadas, formam um todo único, em curva, que propicia continuidade existencial, equilíbrio e mobilidade incapturável. A comunicação entre essas estruturas vertebrais é assegurada por facetas articulares que se autogerenciam transitando entre o visível e invisível e por ligamentos que se alongam e, ao mesmo tempo, se encurtam para se elasticizar novamente, nutridos por um líquido marítimo de uma medula que encapsula fluidos de continuidade em fragmentos.

Mesmo que o encontro seja nomeado como um festival de música, a dissolução das fronteiras entre as linguagens artísticas é ato; e é mais um aspecto em africanidade fundante. Ao comer a Cazuela de Mariscos, é possível redesenhar a si durante o saboreio; ao escutar o som da marimba, vozes se encantam no ar; ao dançar com o pañuelo (lenço), estratégias coletivas para imagens positivas de si são inscritas e determinadas como direitos básicos. E, nesse caminho, tambores são regras em flexibilidade ancestral. 

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: Instrumento percussivo marimba exposto na instalação Casa Biblioteca “Pacífico en versos” do setor Pueblo Pacífico. Foto de Deise de Brito

Intitulado com o nome do artista, músico e poeta Petronio Álvarez (1914-1966), nascido na cidade de Buenaventura (Valle del Cauca), o Festival vem ao longo dos anos ampliando suas dimensões e atraindo pessoas, não somente da região do pacífico colombiano e de Cali, mas também de outras partes da Colômbia e de diversos países.

Há alguns anos, o festival acontece na Unidad Deportiva Alberto Galindo, ocupando  o espaço com divisões setoriais simbólicas que este ano estavam indicadas pelos seguintes micro-complexos:  o Escenario principal (palco principal) com shows e  apresentações dos concursos musicais, enredados com dramaticidades e danças;  o Quilombo Pedagógico, onde ocorriam apresentações musicais e painéis de conversação, especialmente relacionados à biodiversidade do pacífico colombiano;  Pueblo Pacífico com saraus, oficinas, vivências, instalações (Biblioteca e Casa da Parteira, por exemplo);   Estéticas del Pacífico com desfiles de moda, trançadeiras,  maquiadoras; e as Cocinas e Bebidas Vivas com vendas de comidas e bebidas tradicionais da região do pacífico na Colômbia, com degustações musicais, prosas e conversações gastronômicas-poéticas-griotizadas .

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Mapa da 28ª edição do Festival Petronio Álvarez na Unidad Deportiva Alberto Galindo. Fonte: Site da Prefeitura de Cali.

Perto da entrada do evento, havia um comércio ambulante também em movimento com preços mais acessíveis, que se relacionava de maneira perspicaz com a vigilância, o policiamento e a fiscalização – que também organiza a recepção do público que tem direito ao acesso gratuito não somente na Unidad Deportiva Alberto Galindo, mas também em todos outros locais de Cali onde o Festival acontece em ramificações.

E, no trânsito entre os micro-complexos, havia ainda a possibilidade de ser envolvida em performances espontâneas de divertimentos, ser influenciada pela premissa da COP 16 (Conferência da Nações Unidas sobre a Biodiversidade) – realizada em Cali em outubro de 2024 - e de se sentir incomodada por ofertas sonoras e visuais das empresas apoiadoras em quiosques com Dj´s e totens que se querem representativos das culturas do pacífico. No entanto, a interação com uma maioria de pessoas negras, nas suas mais diversas composições existenciais, foi o ápice da minha experiência.

Uma coexistência receptiva se revelava em dança de bando ou agrupada nos grandes shows musicais, no concurso, ou nas performances. Nesse caminho, o pañuelo, lenço - acessório tradicional em culturas dançantes do pacífico colombiano, é dispositivo de reunião e arma para a alegria. Através dele, ao abraçar o som da marimba e o entoar do canto de mestres e mestras, o encontro entre aparentes pessoas “desconhecidas” acontece, reverberando gestotudes encantatórias de confluências, entre distintas experiências em negritudes.

Ao dançar em grupo com passos cadenciados, balançando o pañuelo, e transferindo o peso de um pé para o outro, que orienta a contínua relação de flexão-extensão dos joelhos, favorecidos e-namorados as/com atitudes sinuosas do quadril, os corpos se ocupam de si, teorizando que o movimento, aos modos negrafados, é o próprio destino e a genuína possibilidade do momento, num ciclo de por enquanto, de entretanto e por meio-início.  Mais uma vez, como na gestotude de Inteligência no aeroporto, só que em outro contexto, o corpo é o primeiro lugar e técnica de acesso à liberdade, sendo arquivo e arquivista ao mesmo tempo, a ocupação em restauro pelo movimento.

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