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Intraduzível?

Deise de Brito

Espetáculo: Unwanted

Compagnie Kadidi

Países: França e Ruanda

Data: 21 de setembro de 2018

Local: Teatro do Centro Cultural Minas Tênis Clube (Belo Horizonte - MG)

Evento: 14º Festival Internacional de Teatro - Palco e Rua - de Belo Horizonte (FIT-BH)

 

Texto originalmente apresentado no blog do FIT-BH/2018, compondo a prática de crítica desse evento.

FICHA TÉCNICA

Concepção e Coreografia: Dorothée Munyanesa

Elenco: Holland Andrews, Kamal Hamadache e Dorothée Munyanesa

Direção Técnica: Marine Le Vey

Engenharia de Luz: Anna Geneste

Produção Compagnie Kadidi com o apoio de Anahi (www.anahiproduction.fr) (Informações retiradas do Programa do FIT-BH/2018)

Um pacote de sensações que não pode ser escrito. Talvez essa seja a melhor maneira de traduzir a experiência com “Unwanted”. No entanto, toda tradução, conforme especializades no assunto, implica num certo tipo de traição; assim, tanto o escrito como o não escrito, durante o processo de transposição sobre algo que se apreciou, são campos preenchidos de incompletudes. Neste caso, o silêncio, ou melhor, a pausa se faz necessária.

 

Unwanted, concebido por Dorothée Munyaneza e gestado em seu corpo ainda em 1994, quando seu país sangrava uma guerra, evidencia a ideia de que estética e política são indissociáveis. Uma possível ação no sentido contrário a essa noção é uma violação da ética, princípio precioso. Depoimentos de dor. Testemunhos de mulheres que sofreram estupros, ocorridos durante o genocídio dos Tutsis, em Ruanda. Contudo, como a artista bem colocou, em conversa com o público após o espetáculo, o estupro não é um problema africano. Nós, latines americanes, sabemos, ou pelo menos deveríamos saber, que essa é uma realidade histórica que a colonização nos deixou como legado.

Eles fizeram de tudo comigo. Tudo era permitido.

Esse texto atravessa os corpos de mulheres significando os nossos medos, os nossos receios, minando o nosso autocuidar-se. Enquanto houver, nunca será demais falar sobre. Enquanto doer, os gritos sairão das mais diversas bocas. Eles atravessarão gerações e racharão as paredes brancas mais cordiais. A força do trabalho de Dorothée está nisso, além de localizada na maneira como ela, em colaboração com Holland Andrews e Kamal Hamadache, construíram o trabalho.

Este não é só a forma-resultado dos modos de produção contemporâneos que nutrem novos formatos para as intersecções, entre diferentes linguagens artísticas. O êxito acontece, porque as pessoas envolvidas no trabalho permitem-se a uma conversação correndo riscos, inovando maneiras de conceber as narrativas, pois esse processo – ao mesmo tempo em que é labor – é exercício de cura. 

São muitas memórias, inscritas nos corpos das três mulheres negras em cena: Dorothée, Holland e a imagem com o desenho de outra moça que parece representar as outras camadas da Dorothée. As vozes dessas memórias são reveladas e reformadas pelo tempo de outras vozes vigilantes, nas ressonâncias sopranas de cânticos ou nas reverberações tonais dos depoimentos gravados, grafados e movimentados.

São socos no estômago, gargantas indignadas, úteros invadidos, leites derramados e sugados. “Como dar à luz e não amamentar?”. São rejeições maternas dolorosas. Coreografando com o corpo essas vidas, Dorothée Muyaneza testemunha, com ou sem microfones, sua relação com as histórias de estupro contadas pelas mulheres ruandesas, relatos que ela ouviu ao regressar àquele país.

Há contração e contorção nas movimentações; e há sutileza junto ao rasgar, ao desmembrar, ao dobrar. E, quando uso a palavra movimentação, não me refiro apenas a um deslocamento do corpo no espaço, mas também à respiração interrompida, ao olhar que penetra, o texto que é dito e não dito sob formas vocais variadas e nunca simplórias. É o amassar no pilão, é lavar o corpo da outra com as águas da sororidade, é a troca de roupa para se re-inventar, é o abraço entre o canto operístico, o canto-texto tonal e a insurgência de um rock. É o movimento de Vestina.

Deusas!

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