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Marginais das Quebradas de Cubatão

Jhow Carvalho

Texto publicado em 18 de junho de 2025
 

Espetáculo: Favela de Barro - Instáveis Moradias em Queda

Esquadrilha Marginália

 

País de origem: Brasil (Cubatão - SP)

 

Assistido em: 05 de junho de 2025

 

Local: SESC Avenida Paulista ( São Paulo - SP)

 

Período de estreia: 05 de junho de 2025

 

FICHA TÉCNICA

Idealização: Esquadrilha Marginália

 

Direção: Sander Newton

 

Dramaturgia: JùpïRã Transeunte em Processo Colaborativo

 

Direção de movimento: Castilho

Atuação: Julia Victor, JùpïRã Transeunte, Luiz Guilherme, Jezuz Pereira e Rafael Almeida

 

Técnico de Palco: Michel do Carmo

DJ/Produção Musical: Breno Garcia (Groovy)

 

Desenho de Luz: Babi Sabino e Rafael Almeida

 

Operação de luz: Babi Sabino

 

Desenho de Cenografia: Jezuz Pereira

 

Cenotécnico: Josué Salvino

 

Assistência de Cenografia: JùpïRã Transeunte

 

Desenho e Concepção de Figurino: Amelia Maria e Júlia Victor

 

Assistência de Figurino: Luana Laciny e Laura Braga

 

Produção: Jack (Corpo Rastreado), JùpïRã Transeunte e Jezuz Pereira

 

Social Media: Luiz Guilherme

Apoio: Galpão Cultural – Parque Anilinas

 

Financiamento: Espetáculo contratado para temporada no SESC Avenida Paulista ( São Paulo - SP).

Em 05 de junho de 2025 assisti ao espetáculo Favela de Barro - Instáveis Moradias em Queda – da Esquadrilha Marginália – que estreou no SESC Avenida Paulista. Esquadrilha Marginália é um grupo da cidade de Cubatão, na Baixada Santista do Estado de São Paulo.

O grupo afirma  “que investiga a linguagem popular e a estética periférica, traçando palafitas com as periferias do mundo”.

Em 2024, havia feito uma apresentação no “Farofa de Processo”, na Oficina Cultural Oswald Andrade; e, agora, apresenta, pela primeira vez, o espetáculo “finalizado” (assim, entre aspas, porque sinceramente não sei dizer se o trabalho de construção e pesquisa de um espetáculo um dia acaba, ainda mais depois que é apresentado aos públicos que alimentam nós, artistas, com tantas outras camadas de leitura).

Desde o ano passado, Deise de Brito – matrigestora deste grande arquivo – tem me provocado a escrever sobre espetáculos de Teatro Negro, que não sejam da cidade de São Paulo, que é onde moro, o que sempre acho mais difícil, pois a capital tem um cenário cultural muito específico, em que – mesmo não isento de precariedade – , é bem mais estruturado do que em grande parte do país. Na capital, há diversos editais de fomento, o que faz com que surjam muitos grupos com a possibilidade de pesquisar as estéticas de seus interesses; além disso, há várias casas de espetáculos disponíveis, teatros, centros culturais, casas de cultura: públicas, independentes ou privadas. Esse contexto torna bem mais viável a produção dos grupos daqui comparada a de outras cidades, até mesmo de cidades vizinhas. Só adquiri essa noção, na pandemia, quando realizei muitos cursos e trabalhos online, com pessoas de outros Estados, que apresentaram as dificuldades de realizar espetáculos, manter grupos de teatros, manter espaços de cultura, por falta de orçamento, por falta de espaço e, muitas vezes, por desinteresse político.

Em setembro de 2024, consegui realizar, pela primeira vez, a tarefa designada pela matrigestora - fui à cidade de Santos e assisti ao espetáculo “Nunca foi sobre amor”, idealizado por Joana Chaves, sobre o qual escrevi meu Trajeto Apreciativo anterior. Desta vez, meu objetivo era encontrar um espetáculo com  estética explicitamente negra, de um grupo fora da cidade de São Paulo, que fosse se apresentar aqui, pois vi que – entre maio e junho – centenas de espetáculos estão sendo apresentados. Dezenas deles de grupos que evidenciam as estéticas negras e, nos 45 do segundo tempo, na semana acordada para a entrega do texto, descubro a estreia da Esquadrilha Marginália, no SESC Avenida Paulista!

Para escrever este texto pesquisei, sobretudo, o instagram, em que a temporada está sendo divulgada e, também, as matérias de assessoria de imprensa do espetáculo. Em um desses textos, Jezuz Pereira, um dos integrantes da Esquadrilha, expõe “como o teatro ainda está fechado na capital para grupos que resistem fora desse eixo” e também comenta que “na baixada (santista) há grupos com mais de 30 anos de existência que nunca chegaram perto de acessar alguns dispositivos culturais” – o que me confirma como grupos de fora da cidade de São Paulo precisam “furar a bolha” para conseguir ter seus espetáculos apresentados aqui, além de ter um esforço muito grande para levantar um espetáculo; fazer com que ele se apresente, circule;  manter um grupo de teatro; e conseguir dar continuidade ao trabalho de pesquisa, sobretudo a grupos que têm como fundamentos as estéticas negras, periféricas, originárias, transgeneres e outras marginalidades.

Vale lembrar que “Nunca foi sobre amor” foi produzido de forma independente por Joana Chaves e, ao que me parece, a maioria das ações da Esquadrilha Marginália também foi feita assim, com recursos próprios, ou seja, fora da capital, artistas precisam investir em suas produções, muitas vezes sem garantia de retorno. Especialmente pessoas artistas periféricas, na maioria das vezes sem recursos próprios para investir, sem salário fixo, sem herança; apenas acreditando no seu sonho, na sua ideia, no seu trabalho, se têm algo para dizer, que valha o risco de “fazer no peito”, “fazer na raça”, colocam o espetáculo no mundo.

Na maioria de meus Trajetos Apreciativos procuro  descrever os espetáculos em um tom  mais objetivo e menos interpretativo do que vi; desta vez, meu exercício será fazer o oposto, tratei uma visão pessoal, subjetiva e interpretativa de minha experiência, como público, ao vivenciar o espetáculo, provavelmente destacarei a dramaturgia do Júpïrã Transeunte e algumas punchlines do texto.

Ao chegarmos ao SESC Avenida Paulista para assistir ao espetáculo, somos orientados a ir ao 17º andar da unidade, aguardamos até as 20h, horário de início da obra e nos direcionam para o 13º, em que os atores e a atriz já nos recebem. Entramos em um lugar, em que plantas, sobre fios de energia elétrica, em que há tênis e pipa pendurados, há um tapete escrito Cubatão, há um círculo baixo no chão, feito de tábuas de madeira, numa está escrito Santos F.C., há também dois altares, com velas, café, imagens de preto velho, guias,... Nós, o público, somos dispostos em semicírculo. Quando adentramos esse espaço cênico, que provavelmente é uma favela, um dos atores está defumando o espaço. Achei curioso que uma das pessoas demonstrou incômodo com a fumaça, que  – para a área ocupada – nem era tanta. Isso me remeteu a  um espetáculo que faço, no qual há a mesma ação de defumar o espaço, essa conexão me fez questionar por que,  sobretudo,  os cheiros que remetem às religiões de matriz africana sempre causam tanto incômodo a certos olfatos.

No espetáculo, 7 pessoas nos contam a história. Uma delas, algumas vezes, diz seu nome: DJ, que é literalmente o DJ da peça, e conversa conosco, sempre nos questiona. Ela se apresenta nos perguntando: - “A favela venceu?”. Além dele há 6 personas, essa mistura entre a vida pessoal do ator e da atriz que, às vezes, se funde a um personagem, a uma figura, a uma caricatura, a um arquétipo. Essas personas, durante a história, vivem muitas outras personagens, algumas delas se apresentam por vulgos, como Júlia 013.

Durante o espetáculo, essa favela se transforma, ou essas pessoas vão para muitas outras favelas.

Imagem do Espetáculo Favela de Barros - Instáveis Moradias em Queda - Esquadrilha Marginália - Em cena: Jùpïrã Transeunte, Luiz Guilherme, Júlia Victor, Jezuz Pereira e Rafael Almeida. Foto: Agência Ophelia

Essas personas vestem camisas de time, chinelo, bermuda, tem risquinho na sobrancelha, cabelo descolorido, tem bigodin de tralha e usam juliet. Em momentos da encenação, ficam “nos pano”, mas também ficam sujas de lama. A dramaturgia mescla o passado com o presente e chega a propor futuros, um tempo espiralar, traz muitos elementos de rap, mescla elementos comuns da cultura periférica, com frases e lições de intelectuais como Nego Bispo, além dos depoimentos pessoais do elenco. Os sons dessa Favela são comandados pelo DJ, atriz e atores, que tocam instrumentos estruturados como atabaques, pandeiro e agogô, maracá, e tiram sons de objetos do cotidiano, como balde, colher, panela.

Na encenação, que tem muitos signos e metáforas, trabalha-se com elementos essenciais como água e barro. O DJ é o personagem que sempre nos faz perguntas. No início do espetáculo, cada artista dá seu “salve”, introduz seu depoimento, inclusive é uma abertura bem honesta sobre como foi o processo de criação: papo reto, que ainda denuncia que “o teatro é uma das principais formas de violência de corpos racializados e favelados até hoje”. O espetáculo também lembra como, na favela, a violência é constante, uma das cenas é um flashback, em que um dos atores lembra de Dieguinho, um amigo com quem gostava de soltar pipa, até que “cortaram a linha da pipa da vida do Dieguinho”.

O espetáculo também versa com o humor, com a comédia. Há uma cena, em que recriam a história dos “3 porquinhos”, de modo que cada porquinho constrói sua moradia irregular, em um retorno desocupado, que provavelmente é do poder público; cada porquinho constrói em seu terreno com o material que tem - madeirite, pau a pique. O local fica populoso, as pessoas são representadas pelo palito de fósforo, e o lobo mau quer destruir essas moradias irregulares para construir prédios, representados por copos descartáveis.

Nessa mesma cena, dois atores pegam bonecas (estilo barbie) e criam uma grande caricatura de mulheres ricas, que vivem no estilo patricinha, falam com sotaque gringo exagerado e nos arrancam muitas risadas. Outro momento muito engraçado do espetáculo é a Rádio Cachorro Louco, em que 3 atores assumem o papel de radialistas, latem e pedem para o público ouvinte latir. Nesse dia, uma pessoa do público comprou o jogo e latiu, tirando mais risadas da plateia. Durante o programa, há uma correspondente nas ruas, que entrevista o público. A primeira pessoa entrevistada perguntou sobre qual é o nome da peça, a atriz devolve o texto para o estúdio dizendo que a personagem está cansada de trabalhar mais de 12 horas por dia, não ter folga e ser explorada e ganhar menos do que os seus colegas, uma nítida alusão à situação de trabalho da personagem. A segunda pessoa entrevistada fui eu, como já havia percebido que a atriz transformaria o texto, para continuar o jogo perguntei qual a música preferida deles – os cachorros loucos –, e a correspondente falou sobre os problemas de se relacionar com alguém que também é colega de trabalho e nunca ter tempo para si.

Imagem da Abertura do Processo do espetáculo Favela de Barro - Instáveis Moradias em Queda . Foto: Agência Ophelia.

O espetáculo é bastante interativo e um dos pontos altos para mim foi a cena do baile, em que somos convidades a sair do nosso lugar de público e dançar com o elenco.  O DJ nos lembra de celebrar que “O ancestral do funk paulista é o funk da baixada santista”.

Uma das cenas mais líricas é quando a atriz descreve a Favela como mãe, aos poucos surgem áudios (provavelmente das mães da atriz e dos atores), áudios de cuidado, orientação, preocupação; em paralelo um coro, que é um elemento constante na encenação. O coro  observa fotos e cartas, o que nos remete a uma situação de cárcere; a atriz transforma-se em uma mãe cozinheira que compartilha conosco as lembranças de seu filho. O coro canta a música “Lágrimas” do MC Duda Marapé, a musicalidade da encenação tem muito  rap e muito funk, ritmos que são muito fortes na favela.

Nesta estreia, o que me chamou bastante atenção, como ponto alto do espetáculo, foi o ritmo do elenco; as transições feitas com muita fluidez; cenários e personagens que se transformavam com precisão; nós, como público, somos imersos no espetáculo, como se visitássemos a casa de alguém na “quebrada”, uma visita tão agradável que faz com que um espetáculo de quase duas horas passe em um piscar de olhos. Nesse lugar rimos, choramos, sentimos raiva e dançamos, uma encenação tão dinâmica, viva e rica como é a vida nas favelas.

Foi curioso e potente ver um espetáculo, que fala de forma tão honesta e profunda sobre Favela, ser apresentado na Avenida Paulista, o oposto de uma favela; então, muitas pessoas que estavam no teatro, naquele dia, provavelmente não faziam ideia das histórias contadas, nunca viram ou só viram na TV, ou quando foram fazer um tour pelo Vidigal. Como favelades estão em todos os lugares, com certeza havia também pessoas que conheciam muito bem aquela realidade, que precisa ser contada a todas as outras.

Assim, a Esquadrilha Marginália trouxe a sua potência para a cidade de São Paulo, apresentou a força da estética de gente preta, dissidente e favelada da Baixada… Que, cada vez mais, grupos tenham essa possibilidade e que as desigualdades culturais diminuam até acabar.

ASSISTIR:

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