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Mover-se para

cuidar de si

Igor Lopes

Espetáculo: Praga biológica

Emanuel Xavier

País: Brasil (Surubim- PE)

Local: Auditório Professor Naércio José Pessoa

Evento: Mostra de Artes do Sesc Surubim

 

Estreia: 5 de outubro de 2019

FICHA TÉCNICA

Direção: Emanuel Xavier

Coreografia, criação e interpretação: Emanuel Xavier

Financiamento: Obra montada com recursos próprios do artista Emanuel Xavier. (Informação fornecida pelo artista)


 

A palavra cura vem de cuidar. Fazer os preparativos, prevenir-se, ter cuidado consigo. A dança pode curar? As reações bioquímicas do corpo, ao dançar, são reações de prazer; a adrenalina chega aos músculos e ao coração; o corpo relaxa, e o cérebro libera endorfina, dopamina e serotonina - hormônios de bem-estar. A dança pode ser um desabafo daquilo que não conseguimos dizer com palavras? Ela serve apenas para provocar o bem-estar?

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Espetáculo Praga Biológica no auditório Professor Naércio José Pessoa, com Emanuel Xavier. Foto de Lucas França.

Na calada da noite, na beira do palco, é feito um compartilhamento de memórias secretas de tempos difíceis. Diante do público está a oportunidade de demonstrar um pouco do seu passado e de tomar uma decisão que pode mudar o rumo de sua vida. Encerrar ciclos e iniciar uma nova jornada. Neste lugar mágico, onde pessoas vão em busca de um momento de conforto, diversas realidades encontram-se, e arrependimentos antigos são apresentados, desilusões amorosas e sonhos deixados de lado trazem à tona uma série de questionamentos e também, por que não, movimentos de calmaria. Será possível eliminar de vez a angústia?

Emanuel dança profissionalmente desde 2016 e há oito espetáculos de dança teatro em seu currículo. Além de terem como base as técnicas de Pina Bausch, os espetáculos seguem uma proposta de cunho sócio-educacional. Ele se movimenta para compreender a própria vida, para expurgar o que não lhe serve mais e para ratificar o seu local no mundo. Os títulos de seus espetáculos sempre remetem às situações amorosas e psicológicas que, direta ou indiretamente, estão ligadas à cidade que está fincada em suas raízes familiares. Localizada no Agreste setentrional de Pernambuco, Surubim é uma cidade que marca, como tatuagem, a sua pele e ajuda a “destruir” ou “construir” a personalidade artística e pessoal.

Espetáculo Praga Biológica no auditório Professor Naércio José Pessoa, com Emanuel Xavier. Foto de Lucas França.

A relação da cidade comigo é: ele não sabe dançar, ele só se movimenta. Meus espetáculos são solos porque há algo meu, só meu, fala sempre das minhas dores, das minhas doenças que esta sociedade, esta cidade trouxe-me. A depressão, borderline e ansiedade. O tema é pesado, e a cidade não quer ver nem enxergar.
 
(Emanuel Xavier)

São diversos os espetáculos em que Emanuel fala sobre experiência pessoal. O espetáculo sobre o qual resolvi tratar é “Praga biológica” de 2019. E é de lá que se cruzam as trajetórias das personagens do espetáculo. São diversas cenas intercaladas que formam as pragas biológicas, da própria vivência. E, assim, segue a estrutura não linear que narra o “vai e volta” de situações emocionais e psicológicas, as quais parecem emular, de alguma forma, as próprias trajetórias retratadas por Emanuel.

Em ‘Praga biológica’, está tudo o que a cidade fez comigo. Retirar minha cor, retirar minha religião, minha ancestralidade. 10% dos meus espetáculos estão no improviso. Porque dependendo do que estou passando no momento e que estou sentindo, deixo em cena um pouco das feridas e que ali as pessoas vejam o corte, mas que cicatrizem também. 
 
(Emanuel Xavier)

O espetáculo é formado por sequências de improviso e estudos específicos para cada construção, cada cena é independente, ainda que siga um único fluxo de consciência e conceito. É a partir, portanto, desses encontros e desencontros amorosos e psicológicos - tão afetuosos quanto perturbados, por situações marcadas por silêncio dolorido - que diversos fios vão sendo costurados e descosturados, com alternância das histórias pessoais, religiosa e psicológica do ponto de vista do autor. Os espetáculos da Pina Bausch inspiram o bailarino e coreógrafo, por mais que as pessoas da cidade, segundo o próprio Emanuel, estranhem a sua dança e achem até que é “só movimento”. É uma cidade que massacra, sem dor nem piedade, o artista preto e gay.

Espetáculo Praga Biológica no auditório Professor Naércio José Pessoa, com Emanuel Xavier. Foto de Lucas França.

A influência de Pina Bausch é nítida, ao ver o que tem de teatro e o que tem de dança, nos seus devaneios e nas suas loucuras. Emanuel cursa psicologia e observou que, através da fala junto à dança, o procedimento pode ser eficaz. Os dois juntos são o antídoto perfeito, movimento e fala, que pode levar à cura.

 

“Praga biológica” nasceu de uma depressão que Emanuel passou quatro anos tratando; foi nesse processo que retificou as suas raízes e sua ancestralidade.

Eles tentam nos colocar em uma caixinha. Até que a gente não aguenta mais a pressão e, como uma panela de pressão, explode. Quando tiro a minha vida em cena, não é a minha vida, mas tirar a minha vida desse sistema. E, aí, eu renasço, como uma orixá, na última cena. E quero que as pessoas saibam que sou o Deus da minha própria vida. 
 
(Emanuel Xavier)

“Praga biológica” foi feito para um local (teatro) que comporte a sua estrutura necessária. O espetáculo emula a configuração dessas trajetórias e cada uma das danças e personagens tentam levar a vida adiante, seguindo os próprios sonhos e planos que envolvem, em grande medida, o plano pessoal, as relações íntimas e os traumas do passado, mas que refletem continuamente tensões sociais e raciais ao redor de sua vida, que não cessam em buscar o seu lugar no mundo.

Espetáculo Praga Biológica no festival de dança da Vitória, em Vitória de Santo Antão, com Emanuel Xavier. Foto de kdayfotografia.

O corpo é natureza, isso nos permite dançar para nós mesmos com respeito a nossa história, nossas marcas e nossas ancestralidades. O corpo dança por ser corpo, e todos os corpos dançam a dança, a origem não exclui. O corpo é um labirinto de histórias, dançar é honrar as próprias raízes. É, afinal, um corpo que, em “Praga Biológica”, fala de dor; e, ao mesmo tempo, tenta falar da beleza e da esperança.

 

Algumas feridas descansam; outras se curam; e algumas mostram o que realmente importa: um novo significado para a vida. Estar confortável para compartilhar histórias, experiências, esperanças e emoções é necessário e urgente; e, no teatro, nosso espaço mágico, é possível encontrar o seu local no mundo. Comovente e reconfortante, “Praga biológica” não apenas nos faz repensar nossas escolhas, mas também apresenta lições de empatia que nos encoraja a abrir nossos corações. Como as mágoas que carregamos transformam cada um de nós?

E, afinal, quem somos nós, sem as partes mais complicadas de nossos passados?

Mover-se para cuidar de si é urgente e necessário.

Espetáculo Praga Biológica no festival de dança da Vitória, em Vitória de Santo Antão, com Emanuel Xavier. Foto de kdayfotografia.

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