Nunca foi sobre amor com o nunca riscado...Então, foi sobre amor
Jhow Carvalho
Espetáculo: Nunca foi sobre amor
Joana Chaves
País de origem: Brasil (Santos – SP)
Assistido em 13 de setembro de 2024
Local: Futrica Economia Criativa (Santos-SP)
Período de estreia: 19 de julho de 2024 no Lab Procomum (Santos/SP )
FICHA TÉCNICA
Idealização: Joana Chaves
Atuação, canto e interpretação: Joana Chaves
Banda:
Daio - baixista
Hard - baterista
Matheus D’art - guitarrista
Xamppu - Violonista
Participação especial:
Allure Dayo - Cantor
Tormenta - Dançarino
Preparadora Vocal: Soledad Maria
Cenografia: Coletivo Zero, Manu Abade, Aflora
Figurino e Design: Ateliê Gabi Rolemberg, Gabi Rolemberg (Stylist)
Assistente de figurino: Emanuelle Queiroz
Produção Geral: Diez e Dyamê Gomes
Produtora Executiva: Manu Abade e Aflora
Produtora de Palco: Soledad Maria
Audiovisual: Paulo Mendes e Mariana Matias
Obra realizada com recursos próprios da artista Joana Chaves, parcerias e venda de ingressos.
No início do segundo semestre de 2023 Deise de Brito, matrigestora dos Arquivos de Okan, pediu-me para escrever sobre um espetáculo que não fosse produzido na cidade de São Paulo, tarefa que naquele período infelizmente não consegui realizar. Lembro que procurei espetáculos em agendas culturais, conversei com amizades, fui ver grupos contemplados por editais, e não achei produções afro referenciadas que circulassem nas regiões metropolitanas, nos litorais e interiores.
Não encontrei nem espetáculos de dança, nem de teatro ou até mesmo contação de história. Um ou outro grupo preto da capital estava circulando por outras regiões, mesmo na cidade de São Paulo que é imensa, com muitos grupos, muitas escolas de formação, muitos editais, mais recursos para cultura do que qualquer outra cidade do país, em meados de agosto e setembro de 2023 poucas companhias pretas estavam circulando seus trabalhos.
Este ano o desafio voltou, um ritornelo como diz Leda Maria Martins e de minha parte também a ânsia de cumpri-lo, apesar de o ano anterior já ter me mostrado que a tarefa não era simples; então, me planejei com muito antecedência para encontrar um espetáculo.
Cheguei a cidade de Santos, Litoral, Baixada Santista, na sexta-feira 13 de setembro de 2024, aconteceu a segunda apresentação de Nunca foi sobre amor (N.F.S.A), espetáculo musical idealizado por Joana Chaves, em suas palavras a partir de histórias de amor que ela viveu e que outras pessoas viveram junto dela. Foi uma produção independente, realizada com recursos da artista e parcerias, mais de 20 artistas da Baixada Santista estão envolvides na produção. Para realizar o espetáculo, foram vendidos ingressos a R$ 20,00 via shotgun e esgotaram, além houve também a lista trans free, ação afirmativa que garante o acesso de pessoas trans a cultura, lazer, diversão e vida, visto que ainda hoje a empregabilidade formal dessa comunidade é quase inexistente.
O espaço em que o espetáculo ocorreu chama-se Futrica Economia Criativa, um novo equipamento cultural no centro de Santos, em que acontecem diversas atividades.
Joana Chaves e Banda em Nunca foi sobre amor. Apresentação realizada em 13 de setembro de 2024, na Futrica Economia Criativa. Santos/SP - Brasil. Foto: Jhow Carvalho.
No dia do espetáculo, por exemplo, havia uma exposição, um bar em funcionamento com comidas e bebidas, venda de roupas – um espaço propício para a reunião das pessoas. Tocava Caju, o mais novo álbum da Liniker, lançado em 19 de agosto de 2024 e que tem tudo a ver com a temática do espetáculo... Amor.
Amor: um sentimento tão antigo; todo mundo já falou sobre amor, em livros, novelas, filmes, revistas, mesas de bar. Ontem, hoje ou amanhã, você falará de amor, esse tema nunca sai de moda. Ninguém sabe o que é amor, mas todo mundo quer descobrir, quer dar pitaco.
Neste momento, convido você que lê a reviver esse momento comigo. Brincarei de transitar entre a primeira pessoa do singular (eu) e a do plural (nós). Compartilharei as reflexões, como sujeito, e convidarei você para assistir ao espetáculo, a partir de minhas palavras; então, nós assistiremos, escutaremos e viveremos esse espetáculo.
O espaço Futrica Economia Criativa tem dois andares. Ao chegar, ficamos no primeiro andar, conversamos, conhecemos as pessoas, podemos pegar uma cerveja ou um petisco no bar, contemplar e comprar trabalhos de pequenas e pequenos produtores expostos naquele local, enquanto escutamos ao fundo a voz da Liniker misturada com as vozes das conversas de quem saiu para viver o amor em uma sexta-feira à noite.
Formamos uma fila para a leitura e validação dos ingressos, para que possamos subir as escadas para o andar superior, onde ocorrerá a apresentação. Neste espaço, uma pessoa nos pergunta: “Vocês estão preparados para o amor?”. Você está?
Esse espaço é um grande cômodo, pode ser um quarto ou uma sala, nas paredes há cartas de amor, escritas ou desenhadas em papel sulfite, há perguntas como: Você tem medo do amor? Há desenhos de bocas com e sem cigarros. As cartas espalhadas por todo o espaço convocam nosso olhar. Há uma iluminação baixa, o que gera uma intimidade gostosa, talvez até mesmo uma cumplicidade, damos alguns passos e alcançamos o lugar criado para nós, público, dividido por um corredor ao centro, nas laterais dele há cadeiras para que o público se sente. A casa está lotada; então, o público irá assistir de três níveis; o chão, as cadeiras e em pé. À nossa frente há o lugar em que a magia acontece: o palco.
Joana Chaves em Nunca foi sobre amor. Apresentação realizada em 13 de setembro de 2024, na Futrica Economia Criativa. Santos/SP - Brasil. Foto: Jhow Carvalho.
Grandes janelas estão abertas, vemos e ouvimos a cidade, nas paredes há mais cartas de amor escritas e desenhadas à mão, um espelho em que foi escrito, com batom vermelho, Nunca foi sobre amor, um abajur com fitas em sua luminária, uma bateria e seu tocador e microfones, de seu lado direito (para nós que somos público) o baixista com seu instrumento, ora em pé, ora sentado em um banco alto; do outro lado, há um sofá em que está sentado o violonista com seu instrumento, seu pedestal e seu microfone.A sua frente, ou a sua esquerda (novamente tendo como referencial nosso ângulo de visão), o guitarrista com seu instrumento, também ora em pé, ora sentado em um banco alto, ou no sofá trocando ideia com o violonista, uma estante com as cifras ou partituras, pedestal e microfone, o espaço – entre palco e plateia – tem um fio com pequenas luzes brancas que cruzam o chão, iluminam de baixo para cima e ampliam o clima de intimidade.
O Show começa… De trás de nós, escutamos a voz de Joana Chaves, ela canta acompanhada de seus músicos “As velhas terão sonhos, as jovens terão visões”. Nossa Diva Cantora abre o show com a música Eu não Vou Morrer de Ventura Profana, poderosa declaração que nos lembra que, para amar, precisamos estar vivas, que amar nos humaniza; e com Conceição Evaristo: A gente combinamos de não morrer. Durante todo o show a banda fará releituras das músicas, deixando com sua cara e nos convidando para dançar, cantar junto, bater palma.
Joana Chaves hoje é uma diva do pop e do jazz, que vive, que ama e que reinventa e reencanta mundos em 2024, veste-se de vermelho, um body, uma minissaia e uma cauda, botas de cano alto até os joelhos e salto fino, female fatale vestida pelo Ateliê Gabi Rolemberg. A voz e o corpo de Joana Chaves é que nos canta, encanta, conta história de amor, o espetáculo musical parte da pergunta "O que é o amor para você?”
A diva cantora não nos ignora, muito pelo contrário, ela precisa de nós. Nos convida a estar com ela, construir o show juntes, conversa diretamente conosco, nos faz perguntas, nos faz refletir, nos faz rir, nos faz chorar, nos impressiona com sua voz e com sua presença de palco. Ela está imensa, sente cada acorde das músicas com todo corpo. Mescla canções autorais com aquelas gravadas por outras artistas, sempre com nova roupagem. O show nos lembra a riqueza da música negra, do samba ao reggae, do ponto de umbanda ao rock.
Joana Chaves e Banda em Nunca foi sobre amor. Apresentação realizada em 13 de setembro de 2024, na Futrica Economia Criativa. Santos/SP - Brasil. Foto: Jhow Carvalho.
Durante o Espetáculo Musical Joana Chaves, a diva cantora, compartilha seu repertório conosco. A partir de suas composições e interpretações, vamos descobrindo quem ela é. Os lugares por onde passou, como ela amou. É ousada, reescreve histórias bíblicas em forma de rock; depois canta Ponto de Pombo Gira como reggae “Matei, matei, o homem que eu amava eu matei. Matei com 7 facadas em cima do coração. Sou Pombo Gira Menina, não aceita traição”. Lembrando de amores viscerais como A Loba Alcione que deseja que você faça Uma loucura por Mim.
Canta em samba A Lenda de Linn da Quebrada. “A lenda da bixa esquisita, ela não é feia nem bonita...Eu me arrumei tanto para ser aplaudida, mas até agora só deram risada”. Lembrando que corpos que fogem e explodem a cisnormatividade comumente são ridicularizados. Nos chama para dançar no Jeito Sexy de Fat Family e lembra que o Show tem que Continuar no Fundo do Nosso Quintal.
Há um momento denso. Aquele em que o amor acabou e não conseguimos levantar da mesa, como nos ensinou Nina Simone. Ouvimos músicas mais tristes. Fim de Festa de Itamar Assumpção e Naná Vasconcellos. Preciso Me Encontrar de Cartola e Deixa Eu Dizer de Cláudia. Músicas também interpretadas por Liniker, no início de sua carreira em um vídeo viralizado. Além de Amor Acidente de Rodrigo Alarcon, com participação de Liniker. Joana Chaves, nossa diva cantora, também tem convidades, participações que cantam a história com ela - Tormenta, que Joana não quer manter no sigilo, quer assumir, juntes cantam um jazz, naquele estilo old school com coreografia e tudo. Depois cantando Sabrinon para ela, que nasceu em 2000 – Allure Dayo.
Joana Chaves tem poder, força, perspicácia e ganância necessárias para realizar um show, lotar uma casa, mobilizar, divulgar e fomentar os trabalhos de artistas independentes.
Em Nunca foi sobre amor, nossa diva cantora vive o amor em diversas formas, do beijo na boca à declaração de afeto para sua irmã mais nova; da denúncia de como corpos de pessoas transvestisgêneres são hostilizados, em aplicativos de pegação, ao respeito por sua avó; das exposições públicas para seus afetos, para as sua amizades que a ajudaram a construir o espetáculo, ou estão ali para prestigiá-la, ao seu namorado. Ela vive o amor e nos convida para viver também, para amá-la. Seu bis é Caju... “Quem me chamará de amor, de gostosa de bandida”.
Joana Chaves em Nunca foi sobre amor. Apresentação realizada em 13 de setembro de 2024, na Futrica Economia Criativa. Santos/SP - Brasil. Foto: Jhow Carvalho.
bell hooks nos lembra que amor é ação, escolhemos amar. Para a criação de uma sociedade mais justa e igualitária, sem racismo, sem sexismo, sem lgbtfobia é necessário amar. Para quem luta é necessário lembrar e assumir que o amor é uma necessidade subjetiva e que amar não nos enfraquece, nos fortalece. Sobofu Somé nos diz que é o espírito que une as pessoas, que o espírito me levou para ver esse espetáculo musical, que o espírito levou você a ler este texto, que o espírito é que promove todos os nossos afetos, familiares, amizades, afetivos-sexuais e que o destino do espírito é causar bons encontros. Linn da Quebrada nos pede “Não queimem as bruxas (não queimem), mas que amem as bixas, mas que amem, que amem, clamem que amem, que amem, quem amem as travas também”. Joana Chaves nos provoca Nunca foi sobre amor com o nunca riscado; então, foi sobre amor, é sobre amor e será sobre amor.