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O AMOR É TERREMOTO?
Benedita e a boka do mundo.

Igor Lopes

Texto publicado em 10 de julho de 2025
 

Performance: “Boka: O centro do mundo”.

 

Gabi Benedita

País de origem: Brasil ( Surubim - PE)

Assistido em: 12 de novembro de 2022

Evento: Sarau Reduto

Local: Reduto Coletivo, Surubim-PE, Brasil

 

FICHA TÉCNICA

Direção, texto e performance: Gabi Benedita

Financiamento: A performance “Boka – o centro do mundo” foi produzida com recursos próprios da artista Gabi Benedita.

Benedita em cena é uma força da natureza e, como em toda natureza, deixa exposta sua beleza e imponência, junto – não menos presente – estão sua potência e sua densidade, capazes de provocar choques sísmicos, de tal modo que, em qualquer ambiente, todas as pessoas que  testemunhem suas performances, são abalados por seus movimentos e por sua voz.

O terremoto, como lhe é característico, vem dos movimentos na crosta terrestre, composta por enormes placas de Rocha. O mundo tem se movimentado e mudado a uma velocidade que nós, pessoas, não podemos controlar, nem compreender. A crueldade que o mundo reserva para aquelas que carregam a diferença no corpo não é exatamente algo novo, mas não podemos nos acostumar a ela.

“Boka - o centro do mundo" é uma celebração da diversidade e uma resistência contra a opressão que permeia a sociedade. A presença cênica de Benedita transcende os limites da performance tradicional, ao criar um espaço onde a diferença não é apenas respeitada, mas também exaltada.

Performance “Boka: o centro do mundo”, no Reduto Coletivo, Surubim-PE, 12 de novembro de 2022. Foto de Yane Mendes.

Nesse contexto, a arte se torna um ato de louvação, um grito de liberdade e um convite à reflexão. Através da musicalidade intensa, da poesia carregada de significado e da representação visceral do corpo travesti, negro e macumbeiro, Benedita nos transporta para um universo onde a marginalização é desafiada, e a potência das vozes silenciadas é resgatada.

A evocação a EXU, como entidade de transformação e conexão entre mundos, simboliza não apenas a resistência cultural, assim como a reapropriação de narrativas que foram historicamente subjugadas. Essa performance não se limita ao entretenimento; é um chamado à ação, uma demanda por empatia e reconhecimento. Ao nos confrontar com a beleza e a força que emergem da diferença, "Boka" nos convida a refletir sobre a crueldade que ainda permeia nosso cotidiano e nos instiga a buscar mudanças. Assim, Benedita nos ensina que, ao manter o estranhamento diante do inaceitável, podemos nos fortalecer coletivamente para lutar por um mundo mais justo e acolhedor. Essa vivência é, de fato, uma ampliação de nossa sensibilidade, uma maneira de transformar a dor em arte e resistência.

Performance “Boka: o centro do mundo”, no Reduto Coletivo, Surubim-PE, 12 de novembro de 2022. Foto de Yane Mendes

Os efeitos devastadores da crueldade, das negligências e das violências, perpetradas pelo Estado, revelam uma realidade muitas vezes sombria e sufocante. As feridas, abertas pela indiferença institucional e pela opressão sistemática, geram dor profunda nas comunidades e nas individualidades que, diariamente, enfrentam as consequências de políticas que – muitas vezes – desumanizam e marginalizam. Contudo, é nesse contexto de adversidade que a força da reivindicação surge, clamando por um espaço que reconheça a dignidade de todes. A luta por reconhecimento e justiça não é apenas um grito contra a opressão, mas também uma busca por amor e solidariedade. O amor, ainda que escondido nas fissuras da vida cotidiana, é uma força vital que nos une e nos motiva a resistir. Ele se manifesta nas pequenas ações de cuidado, nas redes de apoio que se formam em meio à adversidade, e nas vozes que se levantam em defesa dos direitos humanos. Essa reivindicação, portanto, é um ato de amor em si: um amor pela vida, pela justiça e pela esperança de um futuro mais digno. Reconhecer essa dualidade, tanto na performance, quanto na brutalidade do sistema e a resiliência do amor, nos permite entender que, mesmo nas situações mais difíceis, há possibilidade de transformação. É por meio do amor e da solidariedade que conseguimos enfrentar os efeitos devastadores da crueldade e da violência, e é nesse embate que se forjam novas narrativas e novas realidades. Ao reivindicar nosso lugar, não estamos apenas buscando reparação; estamos também semeando o amor que pode florescer em meio às asperezas, criando caminhos para um amanhã mais justo e comunitário.

Performance “Boka: o centro do mundo”, no Reduto Coletivo, Surubim-PE, 12 de novembro de 2022. Foto de Yane Mendes

A performance inicia-se com a imagem poderosa e visceral da artista, seu corpo curvado sob o peso dos paralelepípedos, cada um deles representando não apenas a carga física, mas o fardo simbólico de existir em um mundo que, muitas vezes, parece querer silenciar sua voz. Essa abertura estabelece o tom para um mergulho profundo nas complexidades do ser, no entrelaçamento do amor e da dor, da luta e da resiliência. À medida que a artista avança, os paralelepípedos se tornam metáforas palpáveis de preconceitos e reducionismos que tentam definir a sua existência. Cada passo é um ato de resistência, uma declaração de que, apesar do peso, ela se recusa a ser apagada. Essa luta é um reflexo do que muitos enfrentam: a constante batalha contra a invisibilidade em uma sociedade que, frequentemente, marginaliza. A conexão entre os seres humanos deve ser explorada, ressaltando que o amor é a força que nos une, que nos transforma e que nos permite reconstruir o que foi quebrado. A ideia de que, para cada travesti que é violentamente apagada, uma nova emerge em outro lugar é uma celebração da continuidade e da resistência da identidade, uma afirmação de que a vida, apesar das adversidades, sempre encontra forma de se manifestar. Uma vez escutei de um poeta : “ O amor é água da vida. E a arte é uma alma em fogo. O universo gira de forma diferente, quando o fogo ama a água”. Quando essas duas placas se chocam ou se raspam, elas geram um acúmulo de pressão que provoca movimento brusco, o terremoto.

A performance é, portanto, uma fusão do sagrado e do profano, um convite para que o público se conecte com as próprias memórias e afetos, para que cada um possa sentir a força do amor que nos atravessa e nos transforma.

Performance “Boka: o centro do mundo”, no Reduto Coletivo, Surubim-PE, 12 de novembro de 2022. Foto de Yane Mendes

Neste espaço de entrega, os paralelepípedos, agora, não são apenas peso, mas também símbolos de esperança, de renovação. Cada um deles é uma história, uma lembrança, um amor que persiste e se reinventa, mostrando que, mesmo em meio ao sofrimento, há beleza e potência na luta pela vida e pela afirmativa do ser. A performance nos convida a refletir sobre as próprias correntes de amor, a reconhecer as conexões que nos sustentam e a celebrar a diversidade que nos enriquece. Esse ciclo de amor e resistência é algo lindo de se ver, rico e misterioso. E, ao mesmo tempo, tem algo espantoso, quase sobrenatural. Assim, como o amor.

 

Dica: Veja o clipe  “Lamento de força travesti” interpretado por Renna e Gabi Benedita. A obra  foi produzida com o incentivo da lei emergencial Aldir Blanc

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