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Ora azul, ora vermelha,
e então preso

Fernando Hermógenes

Espetáculo: Banzo

Kiandewame Samba

País: Brasil (Minas Gerais-MG)

Data: 10 de novembro de 2022

Local: Funarte BH-MG

Evento: Residência Artística “Ocupação João das Neves”, promovida pelo 15° Festival Internacional de Teatro, Palco e Rua de Belo Horizonte – FIT BH

FICHA TÉCNICA

Dramaturgia e atuação: Kiandewame Samba


Texto: Davi Nunes


Trilha Sonora: Bruno de Oliveira


Produção audiovisual: Well Mendes


Construção do Cenário - Baú: Seu Tião

 

Kiandewame Samba, nascido em Belo Horizonte-MG, é multiartista kilombista mineiro, ator, dançarino, performer, educador, artista visual e do audiovisual.

 

A obra foi realizada com o apoio do Teatro Espanca por meio do Projeto “Solo Negro”, idealizado pela Cia Burlantins e com curadoria de Julia Tizumba. O projeto foi viabilizado por meio da Lei Municipal de Incentivo à Cultura da Prefeitura de Belo Horizonte e patrocínio do Instituto Unimed BH (2022).
 

O auge foi quando quase caiu sobre as pessoas a grande caixa retangular, um caixão de madeira, um depósito, o quarto pequeno da empregada, o compartimento, a vala da viatura, o porão profundo e sujo do navio. Kiandewame, em cena com sua caixa, sentiu conosco a tensão da quase-queda. Numa fração de tempo, flexionou os joelhos, firmou os braços, travou a respiração, segurou a madeira com a última unha do último dedo, entrou em silêncio. Quem estava perto deu uma leve recuada, mas não se levantou. Por precaução, estenderam a mão em seguida, caso o baú saísse do controle de Kiandewame. Ele, porém, sustentou por minutos o baú inclinado, deixou-nos saborear nossa própria apreensão.

O experimento Banzo começa com um vídeo que registra um sequestro encenado – na tela, vemos o artista, um jovem homem negro, sentando numa calçada, fumando um cigarro e ouvindo música com fones de ouvido. Uma viatura passa. Ele canta. A viatura volta. Diante das luzes ora azul, ora vermelha, cumpre-se a ameaça: o jovem é capturado abruptamente com um capuz na cabeça e carregado à viatura. É confinado naquele baú de metal, pequeno, perigoso, frio. O vídeo acaba e surge a projeção de um texto escrito por Davi Nunes para a ocasião, numa parede com tijolinhos aparentes: o banzo é uma paisagem carcerária, um negreiro que se estendeu para além da travessia transatlântica e continua a navegar com sua passada violenta sobre a vida preta. Do baú de madeira na sala escorrem sons: respiração ofegante, batidas, desespero, o pânico de estar encerrado dentro de seis paredes invencíveis. É madeira com notas fortes de corpo preto farpado.

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Kiandewa no vídeo de abertura doEspetáculo Banzo. Foto: Fernando Hermógenes

Durante toda a dança, movida entre o corpo do artista com o objeto baú, estamos expostos a um percurso angustiante. A escolha de apresentar o vídeo antes da performance tem a intenção de conduzir à analogia entre a atual violência policial contra as populações negras, pobres, periféricas com o tráfico de escravizados nos navios vindos da África. É um corpo negro retinto que se move de forma minuciosa, sincronizando respiração e tensão muscular, um corpo muito atento, estressado, que sua do começo ao fim e explicita o anseio pela liberdade e vida, enquanto foge, no espaço ínfimo, de qualquer vestígio da presença do seu opressor.

Kiandewame sai do baú-porão, num toque de cada vez: da palma das mãos aos cotovelos; e, depois, aos ombros; e, em seguida, cada osso do corpo, como que sendo trançado, encaixando com rigor e, vagarosamente, a apreensão da fuga, com o risco evidente. Ao sair, revela um corpo coberto com calça branca surrada, nada mais. É nu seu cabelo, sua pele, seus estranhamentos, seu pavor. Para cada movimento brusco, uma queda e uma pausa. O corpo está fatigado, sua estrutura está frágil, e o performer traduz tais características com fidelidade em seu corpo. 

Texto de Davi Nunes, autor baiano, para Banzo. Foto: Fernando Hermógenes

Eu estava sentado no chão, encostado na parede; meus olhos desciam com Kiandewame, pausavam com sua dor, caíam com seu sofrimento. O som dominante era a respiração do artista, um recurso corporal que ele emprega com maestria ao longo de todo o trabalho. A respiração não esconde os estados emocionais pelos quais o corpo dele atravessa, e os seus olhos, também conscientemente aplicados, complementam a dureza de sair do baú e dar-se conta de estar em outro continente, outro país, primeiras correntes, tantas algemas – e ainda em algemas. De uma ponta à outra desse corpo que dança, temos a fome, a desidratação, a contagem dos dias em travessia forçada, a tristeza e a impotência muito pontuada.

Kiandewame levanta o baú. Agora, na vertical, ele entra e sai do caixote comprido; em pé, seus braços deslizam pelas paredes internas de madeira, como uma cobra que se arrasta lenta. Seu quadril entra em evidência ao mover-se habilidosamente dentro do retângulo tão curto. Neste momento da peça, o artista faz do baú uma casa com porta e banheiro, um clamor pelo mínimo de privacidade e segurança, um espacinho para cultivar o mínimo de sonho e paz – tudo isto também pisoteado e impossibilitado pelo seu algoz. E é na busca/luta pelo bom caminho que ele sai de cena. Não volta ao baú, e consuma sua fuga, passando por trás das fileiras de cadeiras do público, ao qual serve a visão do baú aberto, em pé, arejado pela profecia de libertação.

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Kiandewame saindo do baú. Foto: Fernando Hermógenes

Eu havia passado o dia inteiro com Kiandewame, antes de sua apresentação. Estávamos em uma residência artística; e, à noite, ele apresentaria seu experimento ao público convidado. Pude acompanhar os ensaios, as escolhas e trocar experiências. Pedi ao artista para entrar no baú: sentir lá dentro em meu corpo o que do lado de fora eu colhia com os olhos e ouvidos. Apenas uns fios de luz entravam e mal se pode mexer. O baú é pesado. O baú é porão. O baú é memória de violência, memória que moldou corpo atrás de corpo, após corpo.

Dançar, aqui, é tão preciso, precioso e rebelde.

Na vertical, o baú é transformado em casa – espaço particular, íntimo, possível. Foto: Fernando Hermógenes

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