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Quando as palavras de outras pessoas acessam honestamente o meu corpo....

Deise de Brito

Espetáculo: Faraó Tropical (2022)

AIAS do Brasil

 

País: Brasil ( São Paulo-SP)


Assistido em 08 de outubro de 2022.

Estreia em 15 de setembro de 2022. 

 

FICHA TÉCNICA

Dramaturgia: Rafael Cristiano
Direção: Otacílio Alacran 
Atuação: Otacílio Alacran e Rafael Cristiano 
Preparação corporal e assistência de direção: Rafael Lemos 
Orientação musical e vocal: Solange Assumpção
Figurino: Marisa Caula 
Iluminação: Vânia Jaconis
Iluminadora assistente: Pepa Faria
Cenário: Telumi Hellen
Fotografia: Sérgio Freitas
Filmmaker: André Grejio
Apresentação: Ave Terrena
Design gráfico: Murilo Thaveira
Assessoria de comunicação: Canal Aberto
Produção: Corpo Rastreado


Espetáculo realizado pelo grupo Aias do Brasil e Centro Cultural São Paulo (CCSP). Projeto fez parte da 8ª Mostra de Dramaturgia em Pequenos Formatos Cênicos do CCSP

Lembro do curso contínuo que foi viver a experiência de assistir à  peça “Faraó Tropical”, ano passado. Em cena, Otacílio Alacran e Rafael Cristiano, artistas que se encontraram numa sintonia fina e meticulosa, que conjugou treinamento, intuição e ocupação de si, numa espacialidade porosa e permeável. 

Faraó Tropical

O corpo é uma

conquista

Em eixo, a mobilidade dramatúrgica assertiva de Rafael que, com Tutankhamon e atravessado pela canção (e não somente) “Faraó (Divindade do Egito)” - composta por Luciano Gomes, em 1987, e popularizada pela cantora Margareth Menezes – orienta um campo sensorial de transe-trânsito pela memória.  

A dramaturgia de Rafael Cristiano é misteriosa e estratégica, ao ensolarar palavras, cujos tons oferecem frases, diálogos certeiros e fluídos  permitindo que sombras se contornem na grafia escrita pelo movimento. 

 

Sendo um clássico do Axé music na Bahia, “Faraó (Divindade do Egito)” configurou-se também como criação (agenciada pelo bloco Olodum) que rememorou positivamente certa experiência egípcio -africana, somando-se às pedagogias cultivadas no Ilê Ayê, Malé de Balé, Badauê, Muzenza, Os Negões, Okambi e tantas outras entidades que acontecem. Essas associações carregam, no colo, a natureza de criar efetivos traçados apreciativos acerca das africanidades e das negritudes brasileiras, provocando estigmas impostos ao continente africano e às pessoas negras.

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Rafael Cristiano ( de costas) e Otacílio Alacran (de frente) em Faraó Tropical. Centro Cultural São Paulo. 2022. Foto de Artur Cunha.

O espetáculo não seguia, em sua forma, as estradas estéticas dos blocos negros de Salvador - e nem era pretensão. A ideia parecia ser o acesso a uma outra maneira de radicalidade politeísta e poética, que percebi quando “Faraó Tropical” realocou uma dimensão que entendeu em mim um lugar nostálgico de baianidade.  Mas não a baianidade pré-concebida; e, sim, a soprada - que coaliza diferentes sentidos de subjetividade e saudade.

A forma como o discurso textual era administrado pelos atores, que passam longe da equivocada-ocidental separação entre voz e corpo, abria espaços para eu namorar o tempo, pois este ali era tão borrado, como definido. Como eles conseguiram estabelecer essa coexistência? Não sei. Mesmo assim, sentia quando ambos coloriam o silêncio.

Faraó Tropical

Oxum é um caminho

sem volta.

Talvez um conhecimento integral do processo pudesse me ajudar a trilhar com mais detalhes a resposta para a pergunta anterior, porém só consigo me responsabilizar por aquilo que vivi. E, nessa experiência, identifiquei a confluência de coragens, logo de corações. 

Pois havia o encontro entre o ânimo de me entregar para o que estava sendo proposto e o ímpeto da dupla de atores que não economizava desafios, ao se conectar com outras instâncias cênicas: a iluminação, o cenário arenoso, o detalhe da maquiagem nas pálpebras - que me convidada a saborear um pouco mais a complexidade do enigmático Tutankhamon -, a sonoridade do texto dito e dançado no espaço, e o movimento de cada sílaba que gostava de ser coreografada no corpo. Este  cuja preparação contou com a condução do ator e bailarino Rafael Lemos, pesquisador interessado nos estudos interculturais e praticante do bharatanatyam. Ele também esteve na assistência de direção do trabalho.

Rafael Cristiano em Faraó Tropical. Centro Cultural São Paulo. 2022. Foto de Artur Cunha.

Otacílio Alacran em Faraó Tropical. Centro Cultural São Paulo. 2022. Foto de Artur Cunha.

A direção, realizada por Otacílio Alacram, que também atua na obra, conseguiu desenvolver paridade entre os modos de criar de cada existência na cena, inclusive a do conhecido Faraó evocado.

Creio que a afinidade entre os lugares, adubada pelo diretor, foi uma das razões que me fez conectar de volta (quando a canção “Faraó” é integralmente cantada) ao Campo Grande, um dos circuitos carnavalescos de Salvador. Nessa conexão me percebi envolvida com uma multidão que alimentava e sugava ao mesmo tempo. Suores, sabores e suspensão me acionavam e minutos depois eu retornava ao Centro Cultural São Paulo, apenas existindo no jogo entre aquelas instâncias cênicas que fabulavam, tanto espacialidades, quanto temporalidades. 

E, apesar da aparente “quarta-parede”, eu estava em cena. Eu era parte. Só que existia fora também, algo me solicitava a distanciar, não somente por sensação, mas igualmente por desejo. 

E nesse caminho, as interrupções propostas pelos deslocamentos sonoros e luminosos estavam dentro do curso contínuo que me acessava, assessorando-me nas danças com o tempo e a memória faraônica.      

 

Segundo a sinopse do trabalho Corpos se preparam para receber o espírito de Tutankhamon através do transe. Um boi é imolado para que esse encontro seja possível. O faraó revive para olhar, conversar e festejar com os vivos. O espírito louva divindades, convoca memórias antigas e recentes, e aos poucos se despede dançando a saudade do encontro. Nesse caminho, “Faraó Tropical” me desarmou e sua provocação ainda vive em mim. Eu falei e ainda falo Faraó...

Faraó Tropical

Aos 9 anos Tutancamô subiu ao trono...

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