Sobre a viagem que faz o mar em torno do mar
Soraya Martins
Espetáculo: Vamos pra Costa?
Núcleo da Tribo
País: Brasil (Itacaré – BA)
Assistido em 22 de junho de 2024.
Local: Galpão Cine Horto, BH/MG.
Evento: Festival Internacional de Teatro de Belo Horizonte FITBH-24.
Período de estreia: 2016
FICHA TÉCNICA
Direção artística e criação: Verusya Correia
Criação e Performance: Arionilson Sá, Valmilson Pericles e Guilherme Santos
Designer e operação de luz: Márcio Nonato
Cenário e figurino: Núcleo da Tribo
Produção: Casa Ver Arte
Trilha sonora: DeluxeJoyPilot by Felix Ruckert de Christian Meyer, Paris Texas de Gotan Project; Beira de Lucas Oliveira Rosário; Percussion Storm de Baaba Maal Yiriyaro.
Financiamento: Obra montada em Coprodução com o Festival de Dança de Itacaré.
Vamos para costa? Quem governa o leme das nossas vidas? O que cabe nas redes dos nossos destinos?
Explodindo as fronteiras entre teatro, performance e dança, a obra-mar Vamos pra Costa?, navegada por Valmilson Nascimento, Arionilson Sá e Guilherme Santos, com ancoragem de Verusya Correia, levou para o Festival Internacional de Teatro - FITBH 2024 a arte apreendida tal como na concepção negro-africana, ou seja, indissociável da vida ordinária.
No palco-vida, três pescadores oferecem à vista seus cotidianos, por meio de uma gramática rítmica, com movimentos, espacialidades e gestos que coreografam as funções específicas que exercem na pesca. Trazem para cena corpos-vida que, ao mesmo tempo, é espetáculo, dança e dramaturgia - tecidos por várias dobras discursivas: são corpos em performance e que são performance, apontando, entre outras coisas, para a reflexão das identidades negras, enquanto redes labirínticas em constante movimento de fabulação.
2º dia de apresentação do espetáculo Vamos pra Costa? no Galpão Cine Horto. Foto de Guto Muniz.
O movimento de fabulação 1 , como chave de leitura das poéticas da negrura, aqui, diz – de modos outros – de produção da diferença e da criatividade, como possibilidade de traçar e trançar rotas que dão a ver poéticas e existências negras mais fugitivas e especulativas. E não se esgota em si. Na verdade, direciona para a liberdade como guia de todo o processo criativo, num movimento perene de estabelecer a negrura, como conceito semiótico que se configura a partir de relações.
Nessa perspectiva, contrapondo-se à ideia de brutalidade quase inerente, no imaginário coletivo social, a corpos de homens pretos que trabalham na lida braçal, e não só, o Núcleo da Tribo - composto por pescadores-artistas/artistas-pescadores do quilombo urbano Porto de Trás, de Itacaré, na Bahia – cria imagens que fissuram os estereótipos e os códigos e regimes de representação.
Num jogo ritual coreografado, a partir de tensões, ajustes e afrouxamentos suscitados por uma corda/rede, objeto cênico-performático que trança simultaneamente bagagem ancestral da pesca e modo de sobrevivência, Vamos pra Costa? lança o corpo do homem negro como imagem que seduz, que se abre para inventariar imagens que faltam sobre e a partir da negrura. Imagens que dançam, iniciativas epistêmicas e desejantes, tecnologia de produção de infinitos.
2º dia de apresentação do espetáculo Vamos pra Costa? no Galpão Cine Horto. Foto de Guto Muniz.
A delicadeza da vida cotidiana, dançada pelos pescadores, parece fazer irromper percepções de mundo que ainda não foram vivenciadas sobre e a partir de corpos pretos. Isso é da ordem da fabulação, que brinca de concretizar o imaginário, de desejar e criar novas imagens, olhares e identidades em devir. Valmilson Nascimento, Arionilson Sá e Guilherme Santos são corpos-bailarina, como diz Leda Maria Martins, que dançam um saber vaga-lume – “convívio, pertencimento, afetos, disputas e as múltiplas possibilidades de relação com o mar” 2 - assumindo os próprios corpos não somente na sua capacidade de sobrevivência, mas também, e sobretudo, na sua potência de criação.
Ao explodirem a ideia de uma representação teatral e se lançarem ao mar dançantes, os três pescadores presentam-se, isto é, põem-se em presença a vida-pesca-vida e oferecem ao público um saber hieroglífico das culturas e identidades submetidas a processos reducionistas de suas existências.
Em seus inúmeros modos de realização,
em suas poéticas e paisagens estéticas,
a corporeidade negra, como subsídio teórico,
conceitual e performático,
como episteme, fecunda os eventos,
expandindo os enlaces do corpo-tela,
como vitais que irradiam e refletem experiências,
vivências, desejos, nossas percepções
e operações de memória.
Um corpo pensamento.
Um corpo também de afetos. 3
As três corporeidades negras, em Vamos pra Costa?, nesse sentido, são corpos historicamente implicados em uma linguagem dançante que ressoa e inscreve os próprios sujeitos-pescadores em determinado circuito de expressão, potência e poder.
No artigo, “O corpo na letra: o transgênero performático” 4, Graciela Ravetti utiliza o termo performance como operador epistemológico, para deslindar novos espaços de conhecimento cultural. Intensifica as relações constitutivas entre performance, memória e história, ao apontar que a performance revela experiências individuais e coletivas. É nesse trânsito que se fortalecem os impulsos de resistência à dissolução de componentes, tanto culturais, quanto ideológicos, atuantes como resíduos culturais que integram as pessoas a um território, a uma paisagem, e que passam a ser pele, olho, roupa, gesto, cheiro, fala, silêncio – em partituras. Tais partituras emergem como restos de algo maior e irrecuperável, reproduzível e passível de ser recriado, mas que, de alguma forma, é restituído a um passado e, ao mesmo tempo, transmitido ao futuro e relido no presente.
Esse trançar dos tempos se dá muito de perto em Vamos pra Costa?, levando a compreender que a performance, de algum modo, implica outras performances, do passado e do presente, e que cada efêmera prática, longe da ideia de finitude e fugacidade, surge como um significante novo, outra possibilidade performática, como sinaliza Ravetti. E esse significante novo, recriado e transcriado, inscreve a performance em novos saberes e espaços sociais, culturais e históricos, além de criar sentido de identidades, no caso, mais opacas e fabulantes.
Nesse sentido, o corpo é uma instância do saber fundamental, quando se pensam as performances afro-brasileiras, tanto lato sensu, como o samba, congado, maracatu, quanto stricto sensu, o teatro e as performances. Performar, sobretudo, com a voz e o corpo negros, é da ordem da resistência e da anunciação, entendida, neste contexto, como ato de criar e recriar, a partir não dos arquivos hegemônicos de que a cultura branca dispõe (os modelos de teatro, de dança e de performance), mas através de um corpo da memória, um corpo da travessia que se faz corpo-inscrição de conhecimento:
Contra as tendências genocidas que se serviram de práticas escriturais, a performance possibilitou, desde o princípio dos tempos, o registro e a permanência daquilo que se sabe, como indivíduo e como grupo, sem ter que recorrer a caracteres gráficos, esgrimindo o artifício epistemológico da necessidade da transcrição das experiências em documentos. Trata-se de outros tipos de arquivamento. Ou, para dizê-lo de outra maneira, o não dominar os procedimentos ocidentais de leitura e escritura não implica não possuir memória, história ou reminiscências. Por esses motivos se justifica estudar as ações performáticas quando nos interessamos por nossas tradições, cultura e arte, ou seja, por nosso ser no mundo: é porque tudo o que somos e o que sabemos nos remetem sempre além do sacralizado pela escrita e, mais do que isso, nos impulsiona a superar os limites do que a língua – qualquer língua – nos permite articular. 5
As corporeidades negras dos três pescadores, assim vistas, “não define, pois, uma cor, uma substância, mas uma teia de relações” 6. São, ao mesmo tempo, corpos-redes e corpos-sutura, que dizem não de um bordado, um tipo de costura bonita, mas de um procedimento que consiste em costurar as bordas de um corte ou ferimento para fechá-lo.
Pensar a sutura, nesses e desses corpos, é pensá-la a partir do lugar de fragmento/ruptura, que diz de estéticas elaboradas com base numa história/cultura de um povo em pontilhados, feita de fragmentos espalhados e recriados no/pelo mundo. Tal fragmentação não é um processo de “desencanto” ou de desagregação social, de um mundo dividido entre capitalistas e comunistas, da efervescência das vertentes pós-estruturalistas e desconstrutivistas, como acontece com a arte contemporânea hegemônica. Não tem a ver com oferecer à criação, assim como à recepção, uma liberdade fantástica. A fragmentação, aqui, não é um processo, mas uma condição, sem possibilidades de escolhas para os sujeitos negros moventes pelo mundo. Ela dá a ver corpos que, na travessia atlântica, são já fragmentos de memórias, mobilizados, aponta Achille Mbembe, para dar conta da experiência fragmentada em si mesma. Dessa condição se anuncia, cria, recria e transcria uma arte de suturar rastros, restos, resíduos e vestígios.
Daí, corpos-sutura que tecem-e-retecem-fio-a-fio as redes de pescar da história e fabulam a memória. Logo, performar o saber, a memória, o passado, o presente, mirando um futuro por vir, é, na verdade, a possibilidade que esses corpos têm de registrar a memória, a história e as reminiscências, como indivíduo e como grupo, “sem ter que recorrer a caracteres gráficos, esgrimindo o artifício epistemológico da necessidade da transcrição das experiências em documentos” 8.
2º dia de apresentação do espetáculo Vamos pra Costa? no Galpão Cine Horto. Foto de Guto Muniz.
Valmilson Nascimento, Arionilson Sá e Guilherme Santos são corpos-redes, corpos-sutura e, sobretudo, corpos-pensamento. De processos, procedimentos, inputs e outputs. De afeto. Gestos, movimentos e espacialidade. Corpos textos e contextos, semiose e semiótico. Inscrição e produção de conhecimento. Corpos da história. Desejantes. Rotas de fuga. Corpos de anunciação. Especulação. Corpus de (cor)eografias fabulantes.
1 A noção de fabulação, assim como de aquilombamento e fissura, está no meu livro Teatralidades-Aquilombamento: várias formas de pensar-ser-estar em cena e no mundo, 2023.
2 Clóvis Domingues, na crítica sobre “Vamos pra Costa?”, Disponível em: https://www.horizontedacena.com/uma-danca-nas-diasporas/
3 Leda Maria Martins, em Performance do Tempo Espiralar: poéticas do corpo-tela, 2021, p.80.
4 Artigo que compõe o livro Mediações Performáticas Latino Americanas, 2003.
5 Artigo “O corpo na letra: o transgênero performático”, 2003, p.85.
6 Leda Maria Martins em: A Cena em Sombras, 1995, p.66.
7 Referência ao termo cunhado pela artista visual Rosana Paulino. Disponível em http://amlatina.contemporaryand.com/pt/editorial/rosana-paulino-the-suturing-of-history. Acesso em: 01 ago 2024.
8 Artigo de Graciela Ravetti “O corpo na letra: o transgênero performático”, 2003, p.85.