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SobreVivências
solo(s) de Jean Palladino

Correnteza Braba

Espetáculo: Sobrevivências
Jean Palladino


País: Brasil ( Monte Alegre - PA)


Produção: Jean Palladino


Evento: Apresentação única de

SobreVivências
 

Local:  Centro Cultural Barravento, Manaus -AM, Brasil. 


Assistido em 25 de novembro de 2023

FICHA TÉCNICA

Intérprete: Jean Palladino 
Direção: Alexandre Sena

Por muito tempo acreditei que a dor e a tristeza seriam as únicas formas de falar sobre as minhas existências.

O teatro ocidental - branco e europeu - mostrava que o que interessava para a cena era o sofrimento de um corpo, o seu esgotamento, a sua exaustão para expressar o realismo ao espectador. 

No teatro negro, encontrei ecos de vozes parecidas com a minha, e - por uma decisão política importante para aquele momento - utilizavam a reprodução de violências como forma de denúncia do racismo - mordaças, violências físicas, pintar o corpo de branco - foram alguns dispositivos utilizados por minhas referências, no início da criação de minha estética, e eram essas formas que eu reproduzia em meus trabalhos. 

Falar apenas sobre dores e limitar minha narrativa aos episódios de sofrimento nortearam meus primeiros passos no teatro; e logo compreendi, no início do trajeto, que utilizar o sofrimento, como sinônimo da existência negra, é limitar a pluriversidade dessas vivências ao trauma colonial.

No espetáculo SobreVivências,

o palhaço Caco nos lembra que é possível gargalhar com as memórias negras.

No início da obra somos acolhidos por uma voz em off carregada de sotaque nortista, de uma senhora de idade comentando sobre a sua emoção de ir ao teatro assistir “o artista da família” (ela falava de Jean Palladino, ator que criou o palhaço Caco). Desse modo, já estamos nos sentindo parte, um corpo afro-indígena em cena, um palhaço que usa um nariz preto e, em seu tornozelo, traz um chocalho indígena que soa, enquanto o corpo se movimenta em cena, é para esse ambiente familiar e de proximidade que Caco nos conduz, deixando isso mais explícito no momento em que envolve toda a plateia em uma corda de sisal: todos estamos conectados por laços, e o palhaço precisa de nós para conduzir essa história, construída por muitas mãos, talvez uma grande metáfora sobre a vida, uma síntese do espetáculo, ou apenas uma cena para distrair o público, como é assumido por Caco.

De certo, é necessária muita coragem para fazer palhaçaria; e, mais ainda, é necessária muita intimidade para fazer

palhaçaria negra, compartilhando uma bagagem de memórias de tentativas de destruição de identidade; e fazer disso riso, como faz Caco.

Em uma cena, são utilizados um espelho e uma bíblia, elementos que carregam significados brutos para corpos negros, em poucas palavras e gestos, compreendemos a experiência negativa no cristianismo e como imposições de regras fizeram Caco (ou Jean) enxergar uma imagem negativa de si, frente ao espelho. Percebemos a quebra de autoestima através de um dispositivo colonial. O espelho foi também um elemento utilizado pelos colonizadores durante a invasão de Abya Yala, em troca de produções e para conquistar os povos originários, a fim de invadirem esse espaço. Caco nos apresenta esse trágico momento da história brincando em uma pequena piscina de plástico, em que quase não cabe, e um patinho de brinquedo, e nos lança no dilema “Para onde ir agora?”.

Para onde ir agora, depois que destruíram suas referências, suas identidades e seus laços? Para onde ir agora que lhe tiraram o território? Para onde ir agora, depois que destruíram a sua  imagem? Caco se distancia, vai pra longe, a luz diminui, não nos dá resposta. Infla um balão exorbitante, e nos leva para depois da estratosfera, ao inserir a cabeça ali dentro, Caco parte para um território desconhecido. Após tomarem o que era seu, com a cabeça como a de um astronauta ou um extraterrestre, caminha em um tempo lento ditado por uma gravidade desconhecida, quase sem chão. O balão estoura, retornamos à terra refletindo nas tantas e tantas vezes em que nossas mentalidades precisaram processar diversas demandas, impostas pela forma branca de pensar; em quantos traumas e dores tiveram de ser compreendidos pela imposição da branquitude.

O Caco não cedeu aos seus algozes, entendeu e nos ensina que, se a briga é sobre território, precisamos construir (ou reconstruir) os nossos.

Depois de discutir a colonização, ele atualiza essa conversa  para os lugares que perpetuam o pensar colonial, refletindo sobre a trajetória de formação de Jean Palladino, na Universidade de Teatro, que - por um lado - possibilitou a criação de Caco; por outro, não compreende como um lugar que deveria formar sujeitos, acaba por deformar e apagar as suas vivências. Caco cria um novo lugar bonito para si e para o seus, veste um traje no qual pode grafar com um giz todos os territórios que formaram a sua existência. Nesse ponto, Jean e Caco se encontram em uma afetividade não apenas cênica, são invocados todos os espaços que possibilitaram vitalidade e formaram aquele sujeito. Caco nos apresenta a história por onde começou ou “por onde eu me lembro que começou”, são grafados em sua veste o território Monte Alegre (município do Pará, onde nasceu Jean), o território família, o território circo e como cada espaço desse foi importante para a sua existência e a retomada da sua identidade.

Forjado por seus territórios, o ator nos lembra das motivações para construirmos um território saudável, agradável, seguro e nutritivo para todos e como esse criar precisa ser distante do sentimento de posse, pois - afinal de contas: “O mundo que a gente vai criar, nem vai ser nosso”, a família que construímos com tantos e tantos laços são os territórios que permitem a continuidade de nossas existências e narrativas. Uma frase que dá conta desse pensar é o ditado africano “que a palavra seja melhor em minha boca do que foi na de meu ancestral”, para exprimir o sentido da nossa responsabilidade (para com os mais velhos e os mais novos) de fazer deste, nosso território, um lugar de paz e valorização de tudo o que foi passado de herança. Desenha-se NIARA na veste, o nome do fruto da parceria de Jean e Francine que logo irá nascer: “Eu estou fazendo a família crescer”, com esse nome tão bonito, nos enche de esperança no início, meio e início.

Que Zambi e todos os orixás, possam abençoar Niara, e que o tempo seja benevolente em sua trajetória. 

Bons frutos ao Espaço Cultural Barravento e a sua família.

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