Um convite ao transe para eclodir grandezas e talhar medos
Ariane de Souza
Espetáculo: Sobre Mim e Josina
Larissa Jardim
País: Brasil (Ibitinga/Bauru- SP)
Assistido em Março de 2022, Fevereiro e Junho de 2023.
Local: Casa Autoral - Bauru/SP
SESC Bauru - Bauru/SP
Praça Kasato Maru - Bauru/SP
Evento: Sarau Ponto de Encontro (2022), 10ª Edição do Festinbau (2023) e Sarau da Praça (2023)
Período de estreia: Dezembro de 2021
FICHA TÉCNICA
Concepção, texto e atuação: Larissa Jardim
Financiamento: Cena elaborada com recursos próprios da artista Larissa Jardim.
O que pavimenta o chão em que nossas criações são geradas?
Escrevo de Bauru, interior de São Paulo. Os interiores têm ritmos de vida que parecem espiralar em outro tempo, em comparação às metrópoles, por vezes muito preenchidas [e transbordadas] de gente, trânsito, concreto, capital, negociações, ritmos, fusões, imagens, desejos. Pactuam de outros acordos com o tempo do capital – não é um pacto apartado do capital – mas a velocidade com que somos mastigadas se dá de outra forma, parece mais morosa, quase gentil.
Começo essa apreciação de trajeto com uma questão que me parece fundamental para tudo que será tecido. Essa pergunta tem, também, como intuito uma provocação, não só pela resposta prática - no sentido geográfico - mas sim pela possibilidade de suscitar indagações sobre nossas escolhas. O que fazemos [ou não], a partir do que as condições permitem, interrompem, nublam, escondem, revelam, dificultam?
Em cima desse chão, traçamos nossos trajetos artísticos, em vias a muitas precariedades e escassezes. Quando se pensa sobre o interior de alguma coisa, talvez venha um imaginário de um interior preenchido da totalidade daquele algo, o interior é onde moram corações, órgãos, móveis, líquidos, que mantém algo vivo, preenchido e/ou habitado. O interior também resguarda certo segredo, daquilo que, talvez, seja a essência de algo, de um objeto ou de um corpo.
O interior do Estado mais rico do Brasil é preenchido do quê? Quais segredos gesta? Como o interior-geográfico negocia com nossos interiores-órgãos? Quais as rítmicas que pulsam a vida e afugentam a morte, ou o desencanto, desse interior?
Não possuo as respostas. O desejo mais genuíno é propor as perguntas, que – embora sejam interrogativas – trazem em si algum lampejo do chão o qual piso, e das férteis infertilidades nutridas por ele.
Primeira aparição: Larissa Jardim em “Sobre Mim e Josina”, no evento do Ponto de Encontro, Bauru, 2022. Foto de Caroline Rohwedder.
Sobre Mim e Josina” e suas três aparições-dignificações
O quintal, o palco, a praça. Foi nesses três espaços-tempos que “Sobre Mim e Josina” fez suas aparições para mim, e para o território de Bauru. Uma cena curta, de 15 minutos, elaborada por Larissa Jardim, artista de Ibitinga, cidade que fica a 90 km de Bauru.
Na dramaturgia-cena, uma mulher negra de 23 anos conta a história de sua avó, Josina.
Em minhas apreensões da cena, pude vê-la de diferentes ângulos e distâncias, e como Exu gingou meu corpo, em diferentes tempos-espaços-proximidade, dançarei com e a partir dessa encruzilhada de três pontas, para tecer um trajeto que fusione as três aparições. Ora separadas, ora em confluência, em comparação, em diferença, mas sempre no desejo de congregar as apreensões sentidas nas revelações em tempo-espaços diversos que a cena foi realizada. Das vezes que assisti, a estrutura da cena se manteve a mesma, na dramaturgia e na encenação, nesse sentido, minha apreciação é das curvas-ondulações de cada aparição.
Larissa e Josina se revelaram, pela primeira vez, em aparição cênica a mim, em um quintal. Era o sarau de um evento bauruense chamado “Ponto de Encontro”. Março de 2022. Final de tarde. Eu estava em pé. De pronto houve em mim uma inquietação quando vi a corpa de Larissa circulando por aquele espaço: jovem, negra, vestia roupa de ração de terreiro, blusa e saia brancas. Cabelo solto em tranças nagô. Tudo informando enraizamentos.
Em cena: uma bacia grande de plástico, uma mesa com fotografia em moldura antiga, a foto de uma família – uma mulher de vestido verde se destacava, ao lado de um homem, e estava adornada de crianças pequenas ao seu redor e no colo. Ao lado do retrato, um vestido verde dobrado coberto de flores.
Primeira aparição: Larissa Jardim em “Sobre Mim e Josina”, no evento do Ponto de Encontro, Bauru, 2022. Foto de Caroline Rohwedder.
Larissa começa com uma reza, pedindo licença. Tudo se abre, e começa a cantar – “Embala eu” – música conhecida por meio das vozes de Clementina de Jesus e Clara Nunes. Enquanto canta, percute o ritmo no balde com as mãos. Larissa tem voz aguda-doce, que reverbera naquele tempo-espaço alguma doçura conhecida de quintal de vó – eu, que a vejo contando da avó, sinto o cheiro das minhas.
Enquanto ouço-questiono-comovo a partir do canto, me pergunto a quem Larissa pede para ser embalada. Há em mim uma inquietação com a mulher da foto de vestido verde, que – coincidentemente – embala nos braços um bebê, de roupas brancas, tão brancas quanto as que adornam Larissa na cena. Me pergunto se Larissa é o bebê.
Nesse rito inicial de pedido de licença para pisar e bênção pra arriar, sinto que o público também pede agô junto, como participante direto das revelações que Larissa fará.
É, então, revelada a história de Josina, a mulher do retrato, avó de Larissa. As linhas dramatúrgicas vão se tecendo em dupla fluente, uma é a história que lhe foi passada, geracionalmente, sobre quem era Josina; e a outra, as verdades reveladas sobre essa mulher, que ficaram submergidas por um silêncio familiar, em torno de sua real história. Em cena, a atriz-neta nos conta que soube da verdadeira história, quando em um almoço de família deixaram escapar, 30 anos depois, os fatos de Josina e de sua morte. E enquanto Larissa vai construindo uma narrativa em dois corpos – o seu, que presentifica o relato e o da avó, que ancestraliza a denúncia – começo a entender os silêncios familiares.
Ali, naquele quintal, nos são reveladas histórias de violência doméstica, de gênero, feminicídio, solidão, partos, orixalidades, silêncios, desejos, continuidades...
E o que mais grita, em inúmeros sussurros: as negruras femininas resistindo ao desencanto.
Trago no plural, pois não estamos falando apenas da negrura feminina de Josina, mas também da de Larissa, corpa que ali dignifica as palavras, até então submersas sobre a avó. Enquanto narra sobre a avó, o corpo de Larissa dança aquelas palavras em gestos, atos, imagens, símbolos, que quase nos desenha os percursos de Josina, como em uma contação de história, transmitida oralmente em doçura, mas também como aviso: parece dança, mas é guerra!
Tudo se traça até chegar ao ato da morte de Josina, que – depois de sucessivos episódios de violência doméstica, por parte do homem-marido – perde o bebê que gestava, ficando muito doente e vindo a se encantar.
Quando conta-denuncia as violências, a atriz usa maquiagem mais escura para desenhar em seu corpo as marcas, que talvez em Josina não puderam ser reveladas e acolhidas. Em outro momento, ao final da cena, usa batom em braços e pernas, como uma representação de continuidades, sangue e linhas que unem ela e Josina. O uso desses elementos evoca certa repetição desgastada que aparece com frequência, nas cenas negras e femininas, o que sinto que despotencializa ambas partituras, nas profundidades que podem, e precisam, ser exploradas.
Sobre a cena da violência doméstica, reflito se a atriz precisa escolher essa representação tão concreta das marcas. Quando ela conta as inúmeras opressões vividas pela avó, sinto que a palavra que denuncia é relato por si só, pois já abre talho no silêncio. Se é feita a escolha de contar da dor e da violência, como podemos propor outros signos que gerem outros significantes? Quais outros meios de representar um corpo em carne-viva?
Sigo na mesma rota, quando vejo o uso do batom. Sinto que essa escolha, se investida [considerando a cena como um possível fragmento de um trabalho mais alargado e contínuo para o futuro], pode levar a partitura da cena, que possui dramaturgia potente, a um clichê feminista. E a cena de Larissa-Josina tem outra natureza. O chão, cheiro e textura da cozinha, onde neta e avó preparam o ebó cênico, é outro. O corpo da atriz-neta estando em cena, narrando essa história, já é o desenho das linhas contínuas-sanguíneas, tudo já está posto, e se traça por si.
Quando narra a morte de Josina, sozinha, em sangue, prece e solidão, a atriz nos revela que, geracionalmente, havia sido contado que o avô-marido esteve com Josina o tempo todo, e que ela morreu acompanhada. Nessa partitura, o rumo da cena muda, um descortinamento foi feito. Quando descortina, Larissa esparrama a poeira aos nossos olhos, nada mais está no lugar. É desconfortável, urgente, angustiante e produz identificações. Nos faz pensar nas mulheres de nossas famílias, acorrentadas em silêncios e se rebelando pela voz, presença, por meio de nossos sonhos e intuições. Faz pensar em nossas próprias mulheridades negras.
A partitura final da cena se dá pelo adornamento de Larissa com o vestido verde, semelhante ao da avó na foto. Como se trata de uma cena curta, entendo que é o modo como finda esse encontro Larissa-Josina, pela vestimenta, quase a paramentação da roupa-avó. Se há, na artista, desejo de continuidade e aprofundamento do trabalho, sinto que essa paramentação-adornamento pode ser instância potente a ser mais bem dilatada e deglutida.
Segunda aparição: Larissa Jardim em “Sobre Mim e Josina”, no Festinbau, Bauru, 2023. Foto de Denis Augusto.
A segunda aparição de Josina-Larissa se deu em fevereiro de 2023. Em um festival de teatro da cidade de Bauru, a 10ª edição do Festinbau, um festival tradicional de cenas curtas da cidade, em que Larissa apresenta “Sobre mim e Josina” sob um palco. Era noite, eu estava sentada na última fileira do teatro. Diferentemente da sensação de quintal de vó, que senti na primeira aparição, dessa vez a cena me aterra em outro lugar. Sinto que houve aprofundamento do transe Larissa-Josina, Josina-Larissa, o que me levou à sensação de outro tempo-espaço. Como se o palco fosse um terreno de memórias em espirais, colisão, rota, encontro, desencontro, tudo rodopiando em um tempo quase mítico-ancestral. Talvez a geografia do palco italiano me catapultou neste lugar, mas sinto que, quase 1 ano depois da primeira aparição, havia ali no corpo presentificado da neta e no ancestralizado da avó, um transe mais familiarizado entre elas. Num paralelo às grafias do terreiro, me parece que o corpo-cavalo de Larissa estava mais assentado da encantada-ancestral Josina, era terreno mais conhecido para ambas, havia firmeza-fluidez para o trânsito cênico e oceânico das memórias ali dignificadas.
Na primeira aparição, no quintal, sentia uma dissociação maior entre os corpos-memórias de Larissa à Josina. A atuação da atriz revelava um processo, ainda em curso, de apropriação de si e do transe que se propunha em cena. Havia faíscas em potencial de aprofundamentos, apesar de apartados do que a dramaturgia propunha, como construção de estado de presença(s).
Primeira aparição: Larissa Jardim em “Sobre Mim e Josina”, no evento do Ponto de Encontro, Bauru, 2022. Foto de Caroline Rohwedder.
A terceira e última aparição da cena se revelou a mim, em uma praça, no meio de um bairro periférico de Bauru, em um evento chamado Sarau da Praça. Começo esse trajeto questionando o que pavimenta o chão de nossas criações, e numa coincidência espiralar [ou numa exuzilhada estrategicamente colocada] vou encerrando o trajeto na/pela/com a rua. Era junho de 2023, de noite, eu estava sentada no chão, em torno do espaço onde a cena seria realizada, junto ao público. Em proximidade suscetível ao toque, ao cruzamento de olhares. E lá estavam: a foto, vestido, flor e Larissa-Josina. Pela configuração do evento, no qual rolavam, concomitantemente, feiras e outras atividades junto a cena, havia muitos estímulos ao redor, mesmo assim senti que, no pacto firmado entre neta e avó, houve entroncamento tão preciso, que assentou a aparição como instância única, garantindo que algumas coisas se suspendessem em silêncio e presença, no entorno. Também, foi nessa aparição que pude sentir melhor a dramaturgia, talvez a proximidade com a cena [tanto em distância, quanto em intimidade] tenha aberto uma escuta mais atenta para as escolhas das palavras, o ritmo da poética, em como tudo dança pelas vozes de Larissa e Josina. Sinto que a dança ancestral fica mais encorpada, profunda, íntima.
Da parte de quem assiste, intuo que a cena suscita desejo e interesse de mais: alargamento, tempo, transe, trânsito, canto, adornamento. Em cena, Larissa nos conta que Josina significa “crescida em deus”. E sinto que, de fato, estamos no terreno de deidades, à convite e pelo desejo delas. Há pouco tempo, em troca com Larissa, ela me revelou que a cena surgiu por um convocamento da avó, em sonho. Passo a saber, três aparições depois, que a cena foi pedido ancestral. Incontornável. Nós, corpas diaspóricas, temos escuta sensível às vozes das nossas – cóclea, córnea, poro, retina – tudo atravessado pela herança do trânsito-travessia, receptivo ao uso da palavra como lugar de dignidade.
Ouço, comovida, o aceite de uma jovem em vocalizar a deidade Josina. Penso na coragem da neta, o convite do transe eclodindo grandezas e talhando medos. Sinto essa avó, que como Osún – que cava riquezas no profundo do rio – vai cavando no fundo do seu rio-familiar a continuidade das histórias por meio das suas, transformando tudo em ouro, lampejo de futuro e desejo de mais. Tudo desembocando em negruras femininas resistindo ao desencanto.