Uma dança de marejar olhos, umedecer bocas e arder colunas
Ariane Souza
Texto publicado em 28 de outubro de 2025
Espetáculo: CACUNDA
Adnã Ionara
País de origem: Brasil (Campinas - SP)
Assistido em: 21 de março de 2025
Local: SESC Bauru ( Bauru-SP)
Período de estreia: 06 e 07 de julho de 2023
FICHA TÉCNICA
Concepção, interpretação e direção artística: Adnã Ionara
Co-direção, produção e provocação artística: José Teixeira
Concepção e interpretação musical: Yandara Pimentel, Marcelo Dendém
e Otavio Andrade
Design e Operação de luz: Laren Mezza
Sonorização e sonoplastia: Pedro Florio
Produção executiva: Wannyse Zivko - Arte & Efeito
Financiamento: Espetáculo construído para a 1ª edição do projeto "Música, Letra e Dança" do SESC Pompéia ( São Paulo - SP).
Começo o trajeto propondo um gesto de corpo-voz. Você, que me lê, encante essas palavras em voz alta:
CACUNDA Cacunda cacunda Ca-cun-da Cacunda CACUNDA Cacunda cacunda Ca-cun-da Cacunda CACUNDA Cacunda cacunda Ca-cun-da Cacunda CACUNDA Cacunda cacunda Ca-cun-da Cacunda CACUNDA Cacunda cacunda Ca-cun-da Cacunda
Vá no seu tempo. Repita. Experimente outras possibilidades enquanto diz. Se estiver deitada, fique de cócoras. Se estiver sentada, levante. Diga rápido, pausado, agudo, cantado, exagerando na vogal ou no jogo silábico. Experimente dizer sem mexer a língua ou dizer com ela de um dos lados da boca. Tensione o corpo todo e diga. Derreta e vocalize: Ca-Cun-Da. CACUNDA. Cacunda. cacunda. Ca-cun-da. Cacunda
As palavras originadas no quimbundo precisam de certo jeito de corpo para dizê-las. A boca precisa sincopar para dançar a palavra. A primeira informação que acesso sobre o espetáculo de dança CACUNDA da artista, professora e pesquisadora de dança Adnã Ionara, é de que a palavra Cacunda, originada na língua africana quimbundo, diz respeito a curvatura acentuada nas costas. Dorso, dor, coluna. A outra informação é de que Cacunda vem de Cacurucaia, entidade pomba-gira mais velha dentro das umbandas. Nesse dia, da aparição de Cacunda no meu território, minha coluna carregava dor. Me pus em jogo com uma dança de coluna-dor-mulher, enquanto minha coluna de mulher doía. Isso me demandou sentar o corpo com cuidado para assistir.
O espetáculo aconteceu em uma área de convivência, espaço de trânsito, proposto em formato de arena, circundada por uma mescla de linhas e círculos formados por refletores, ribaltas, público. No momento de chegança do público havia três aparições visíveis em cena, três músicos, posicionados em pontas opostas na arena, junto a instrumentos de percussão, cordas e microfones.
Quando, com a coluna em dor, me sento na roda de Cacunda, sinto que o formato me sugere a organização de um ebó. Uma proposição cenográfica de embelezamento parecido com as grafias de terreiro, as mandigas: elementos dispostos em círculo, arriados em algum tipo de ordem intencionada, lado a lado, em encontro ou oposição, gente negra de olhar atento, pés descalços, a percussão se iniciando, e contornos invisíveis operando mistérios. O espaço vazio no meio – demandando presença, sugerindo que alguma ocupação fosse acontecer. Pressenti de onde estava, que a ocupação já acontecia.

Apresentação de CACUNDA no Festival Internacional de Teatro de Campinas - Feverestival, 2024. Foto de Chun.
Em uma das brechas do ebó, entra um corpo com o dorso completamente abaixado, uma das camadas do vestido cobrindo todo o tronco. A sonoridade propondo convites para a aparição se instaurar ao centro pelas bordas. O vestido em camadas, de diferentes tons e texturas de vermelho e branco, algumas camadas em sobreposição, que foram se revelando na medida que o corpo de Adnã, em estado de ocupação de outras presenças, foi se pondo ereto. O corpo que chega de dorso arriado nos remete a pomba-gira celebrada, uma presença de idade avançada. Uma ocupação de transe forte, misterioso, movediço.
O circuito corpóreo para se pôr em posição ereta – de coluna alinhada, cabeça erguida, ombros para trás, braços ao lado – espirala demorado. A morosidade na movimentação é provocativa em lembrar que as dobras que se demoram também são altamente tecnológicas. Há inteligência em gestualidades lentas, porém, precisas. Oxalá e as sabenças mais velhas que nos digam, mas em uma sociedade afogada e organizada na pressa, é preciso dizer.

Apresentação de CACUNDA no Festival Internacional de Teatro de Campinas- Feverestival, 2024. Foto de Karina Couto.
O cair da última camada do vestido nos revela uma mulher negra, jovem, de olhos grandes e magnéticos, os cabelos crespos avolumados adornando a cabeça. O corpo informando uma negrura que não me parece ser só a dela, mas também ao quê(a quem) ela dança. Noto que a beleza da imagem revelada nos convoca a também alinhar nosso dorso. Estamos, talvez, hipnotizadas por meio da coluna dela(s)?
A lentidão engenhosa do início da dramaturgia também põe a pensar que, para um corpo negro erguer-se em si, talvez seja preciso outro tipo de relação com a gravidade. Não só a física, enquanto força que estabelece relação de atração entre os objetos e os corpos, mas a gravidade da urgência da vida, de existir em um corpo que vive sob tentativas de desautorização da própria existência. A dramaturgia que se inicia pela dilatação, em estado de contração, para o levante do corpo, sugere que, para nós, pessoas negras, só seja possível se relacionar com a(s) gravidade(s) pelas danças.
Na continuidade do espetáculo, há muitas gestualidades germinadas em/por meio de/a partir de: coluna, quadril, joelhos, escápulas, olhos e boca. O namoro entre essas regiões do corpo como alavancas dos movimentos, princípios geradores da escrevivência desenhada pelos gestos, revelam o domínio de um alfabeto corpóreo, organizado para engolir, mastigar, devolver – não necessariamente nessa ordem. O namoro dos gestos não se apaixona no óbvio, na roda de Cacunda; há descontinuidades, reversibilidades, provocações. É mistério enlaçando beijos no mistério. Os joelhos derramando flertes nos pés, cujos metatarsos sibilam para o chão algum tipo de segredo; as escápulas, em cochicho de cumadre com o quadril, que se expande para a lateral, amalgamando junto à coluna torácica um braço esticado com o indicador em riste, para algo que não se vê, mas que ali está [e que aponta de volta]; os olhos gargalhando deboches para o lado oposto de onde o tronco tenta se movimentar, retrucando uma oposição disforme, porém bonita, que demanda que a boca se abra para a língua respirar.
A dramaturgia de Cacunda abrilhanta um corpo em estado e instantes de liberdade, oferecendo-lhe autonomia em existir, pelas vias das não obviedades, ou seja, das desobediências.
O namoro dessas regiões-alavancas entre si, na dramaturgia, também faz lembrar do ensaio da escritora Audre Lorde, presente no livro Irmã Outsider (1984/2019) chamado “Usos do erótico: O uso do erótico como poder”. A inteligência dramatúrgica e cênica de “Cacunda” é síntese do que Lorde nos provoca sobre usar o erótico como exercício de poder, especialmente pelas mulheridades negras. Nesse ensaio, Dona Audre adensa com profundidade analítica e poética que o erótico não é somente sobre o exercício da sexualidade, mas sobre uma dimensão humana de corpos que sentem, partilham, gozam, que escrevem poemas, que dançam. O erótico é instância política e ancestral de sabedoria, orientação, movimento, que diz: Sinto, portanto, sei. E sinto imenso, com vigor colorido e abundante.
Na dança movediça de Adnã, com a colmeia de pombas-giras que dançam junto dela, a iluminação se manifesta como labaredas na roda, em tons de vermelho matizados em intensidades e temperaturas variadas, ao longo do espetáculo, como chamas em movimento, adensando a narrativa contada nos movimentos, seja pelo estado de brasa ou incêndio, dando mais fôlego para que sigamos em hipnose lombar.

Apresentação de CACUNDA na Casa de Cultura Tainã, Campinas, 2024. Foto de Nina Pires.
As sonoridades, construídas pelos músicos por meio de cordas, vozes, percussões, confluem com os corpos que ali se movimentam, de Adnã e das colmeias das encruzilhadas, dando-nos a impressão de que o canto ritualiza o gesto, mas é também por ele ritualizado. Essas confluências são adornadas por instante de silêncio e suspensão do som-gesto, dando mais magnitude ao rito que ali se apresenta.
A sonoplastia tem sonoridades de terreiro e de outras tradições populares negras, expressas pelas percussões e no modo como os ritmos se propõem, pelos encontros e desencontros dos instrumentos com as vozes em cantos, enquanto também craquelam outros ruídos interessantes, mais ásperos, metálicos e quebradiços. Identifico algumas canções e ritmos do álbum Padê (2008) de Juçara Marçal e Kiko Dinucci, que passo a saber depois que também estruturam a dramaturgia do espetáculo.
Em alguns momentos, enxergo pelas labaredas do ebó a aparição de outras presenças a quem Adnã e músicos dançam e tocam. O meu corpo, afeito a ouvir, sentir e ver o invisível, captura o que ali habita junto. Há uma dança coletiva que se instaura, é uma festa perfumada de exuberância, memória, futuro. Acessar essas aparições me mareja os olhos, umedece a boca e faz arder a coluna. A dramaturgia tem propostas de silêncios lindamente colocados, nos quais o som suspende no ápice da sonoridade, junto ao corpo que entra em letargia, revelando que estamos habitando o espaço do rito, algo se entrega e se recebe, em troca justa, já acordada em tempos que não acessamos de imediato.

Apresentação de CACUNDA na Casa de Cultura Tainã, Campinas, 2024. Foto de Nina Pires.
Em alguns dos instantes propostos de silêncio, o público tendeu a aplaudir, o que entendi – depois da terceira movimentação – que se tratavam de aplausos que supunham o encerramento do espetáculo. A repetida reação precipitada do fim, me leva a refletir a respeito da capacidade coletiva de assimilação do silêncio, como núcleo organizador do que se diz, especialmente o silêncio da poética cênica, tão importante quanto o que se conta em gesto, som, palavra e luminosidade. Será uma coincidência do tempo-espaço o qual assisti o espetáculo, ou estamos em uma tendência coletiva impaciente com o que se prolonga em estado de silêncio/dúvida/hiato?
Durante todo o espetáculo, estive em uma posição na arena que não me permitiu visualizar muitas expressões faciais de Adnã. Mesmo assim, a não visualização pouco prejudicou entender o que acontecia, porque toda a parte posterior do corpo cochichava o que não era visível: as escápulas roçando recuos e avanços junto a coluna, e joelhos em flerte nada discreto com os pés. Ela estava de costas, entretanto, parecia estar de frente. Um corpo do avesso, produzindo saberes pela desorganização das linearidades.
Cacunda é uma dança ritualizada, em muitos tempos, e nos provoca o desejo de pôr o corpo a dançar para se saber/sentir melhor, na desobediência. Mas não somente. Ao assistir, sinto que o que Adnã, músicos e as encruzilhadas fazem é o descortinamento de como corpos negros são/podem/devem ser tecnológicos, inteligentes, festivos, sensíveis. Os gestos individuais suscitam desejos de gestualidades coletivas. Corpos em fome, desenhando uma dramaturgia de mesa abundante, partilhada com fartura para engolir, mastigar, digerir, para quem tiver bocas, colunas e escápulas para receber.
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