A casa e a corpa
como final de si
Mainá Santana
Espetáculo: Pelo Pescoço
Ana Claudia Viana
País: Brasil ( Natal - RN)
Primeiro contato por meio da exposição de fotografias e desenhos do artista visual Daniel Torres, com a performer e intérprete-criadora Ana Claudia Viana, em 2019, no Espaço A3 - Natal-RN
Assistido em junho de 2024, por meio da Gravação do espetáculo na Casa da Ribeira- Natal-RN, em 2022.
Período de estreia: 11 de novembro de 2018
Local: Aldeia SESC SERIDÓ, Teatro Adjuto Dias – Caicó/RN
FICHA TÉCNICA
Performance e Coreografia: Ana Claudia Viana
Direção: Ana Claudia e Daniel Torres
Direção de Arte e Operação de Som: Daniel Torres
Direção de Palco: Thaennia Ferreira
Iluminação: Camila Tiago e Leila Bezerra
Operação de Luz: Leila Bezerra
Coordenação de Produção: Mariana Hardi
Revisão Textual: Verônica Campos
Trilha Original: Toni Gregório
Trilha: Noel Rosa (Mulher Indigesta); Elino Julião (Mulher de Verdade); Chico Buarque (Vai Passar)
Obra montada com recursos do Edital Economia Criativa 2018 do SEBRAE/RN
25/08/2018 - Participou do Cena Processo da FUNCARTE, integrando a Mostra de Cenas Curtas no CEU Mestre Manoel Marinheiro (2018)
07/11/2018 Pré-estreia na Casa da Ribeira, na programação do V Colóquio Internacional Corpo e Cultura do Movimento (DEF/UFRN).
O primeiro contato que tive com o trabalho "Pelo Pescoço" (2018), dirigido por Ana Claudia Viana e Daniel Torres, foi em uma exposição de artes visuais no Espaço Cultural A3, em Natal-RN, quase um ano após a estreia. Antes da delicadeza poética instaurada na cena, cuja coreografia é assinada pela intérprete Ana Claudia, as foto-performances e desenhos abrem as portas para o espetáculo, construindo casa para um feminino agredido, cindido e violentado.
Observo, com curiosidade, o movimento que esse texto me demanda: um lugar de perícia, alguma necessidade de descrição de pequenos detalhes regados a alguma reflexão.
Na cena, vai-se construindo um espaço do feminino dentro de uma casa. Uma sirene ocasionalmente aparece ligada, junto ao triângulo de carro, o que pode ter relação com a inspiração do trabalho - dois feminicídios ocorridos na cidade de Natal-RN -, que, na cena, sugerem a presença do masculino. No canto esquerdo do palco, à frente, esses elementos permanecem quase imóveis, em oposição às outras cenografias, manipuladas pela intérprete durante todo o espetáculo.
A primeira cena me toca como uma síntese; a intérprete aguarda o público se acomodar, enquanto está parada, com as pernas juntas e cruzadas, escutando músicas de teor machista e racista. Pode ser que o público não escute as letras, que até dance pela delícia dos ritmos. Podem estar desatentos aos pequenos e crescentes gestos de incômodo propostos pela intérprete. O corpo da artista vai se transformando até pedir para parar a música. Não é escutada, e ela precisa ser “raivosa”, para que respeitem seu limite. Ao levantar seu vestido, cobre a cabeça e revela uma longa corrente se desenrolando pelo tórax, mantendo o cadeado preso ao sutiã. O som do metal incomoda, mesmo ao se soltar da pele marcada pelos elos: em mim há sensação da casa como prisão, onde a quarta parede impele certa conivência. Seremos cúmplices e vítimas de algo atroz.
Espetáculo “Pelo Pescoço”, na Casa da Ribeira (Natal-RN), com elenco original. Foto de Daniele Araújo
As transições do espetáculo, de modo geral, são cuidadosas e harmoniosas. Somos convidados a uma ambiência interna, onde um animal é levado de presente para a casa, com um belo laço feito em pet shop. A corpa de Ana se dilui por uma máscara de girafa - habitante de savanas, pastagens e terras áridas de África. A girafa, cílios em doçura, resiliência e extinção, não precisa de muita água e não é territorialista. Pela trilha, um golpe em forró convoca a imagem de uma “nega” que “não sente doer” a batida do outro, enquanto o animal mais alto do mundo segue reduzido a um foco de luz. As experiências do viver estão inscritas nas corpas.
O trabalho de máscara de Ana evoca o corpo da girafa muitas vezes. Sua interpretação e criação apresentam um corpo vivo, ao utilizar torções e articulações junto à interação com os elementos cênicos - carrinho de supermercado, cadeira - para criar uma girafa que entra e escapa do híbrido mulher-girafa. Abre a possibilidade de tornar-se um animal preso em uma casa, gigantesco, levado como um bicho de estimação sem estimação. Fora de lugar, inadequado. Fico me perguntando, enquanto assisto, se há motivos para mais variações de densidades e velocidades coreográficas. Haveria possibilidade para essa mulher-girafa se encontrar com outras resistências, movimentos, pequenos gestos e outros exercícios de liberdade, mesmo presa?
Espetáculo “Pelo Pescoço”, na Cara da Ribeira (Natal - RN), com elenco original. Foto de Daniele Araújo
Tenho me questionado, ao assistir espetáculos que tratam da dor de certas especificidades em primeiro plano, o quanto podem abrir espaço para o reforço de estereótipos. Em especial, quando não se diz em primeira pessoa. Embora tenha conhecimento de que a proposta cênica tenha sido do parceiro de Ana, é preciso reconhecer o encontro da artista, em sua interpretação e criação de cena e coreografia. Infelizmente, no caso tratado, ainda há a necessidade de espaço para a denúncia e para reverberação sobre questões sociais atravessadas pelos sujeitos. Em “Pelo Pescoço”, há um modo cuidadoso de articular as imagens, os silêncios, a presença do masculino (via triângulo de sinalização e sirene de polícia) e a dramaturgia corporal de Ana.
Durante todo o tempo em que ela está com a máscara, seu movimento aproxima-se de movimento das bonecas humanoides com cabeça girafa, com quem Ana contracena. Preciso, cortante, seco, articulado e sem grande expansividade. É bonito observar técnicas corporais diversas da intérprete, cujos gestos são nitidamente fruto de um percurso aprofundado em linguagens diversas de dança. Nos momentos em que as bonecas estão em destaque, há sempre uma quinta figura boneca-girafa ou humana-girafa em perspectiva, observando, manipulando as outras. Pode ser uma coleção, um encontro com a infância, com o passado, com o presente, a própria mistura corpo-boneco-animal. Manter o feminino infantil, negar a infância ao feminino negro.
Apesar da centralidade e da nitidez do tema, “Pelo Pescoço” joga com dualidades o tempo todo.
Feminino-masculino, fragilidade-força, preso-livre, amarelo-marrom, azul-vermelho, humano-animal, infância-adultez, nada posso-tudo posso, grande-pequeno. E a presença de Ana Claudia nesse trabalho, como intérprete, evoca ainda um campo de discussão acerca da dualidade (ou triparte) do sujeito pardo, como construção de identidade no Brasil.
Passo por teóricas/os/es que compreendem a parditude e a miscigenação como campo de estudo (Sueli Carneiro, Gloria Anzaldua, Verônica Daflon) e pela questão do apagamento indígena da história brasileira de miscigenação (Leonardo Rocha). Certa vez, uma mulher indígena Guarany-Mbya me disse “brasileiros são bisnetos de mulheres indígenas”, e, para além do implícito e improvável “todes”, o que me provoca é esse não reconhecimento, o limbo em que pessoas não retintas com descendência múltipla podem se encontrar, ainda, em 2024. Nessa toada, sinto necessidade de pontuar o lugar onde encontro Ana na cena, neste trabalho em específico. Apesar de a máscara diluir (um pouco) os seus marcadores raciais, tendo em vista o tom claro de sua pele, em nenhum momento da criação, Ana perde a conexão com suas ancestralidades. Seja pela fisicalidade ou pelo modo como a dramaturgia corporal é construída, sua presença convida à identificação de mulheres, cujas corpas foram historicamente racializadas e consumidas. Então, pergunto-me se haveria maneiras de suavizar o branco da cor da pele das bonecas. Talvez seja a minha criança incomodada, com uma identificação fragmentada.
Espetáculo “Pelo Pescoço”, com elenco original. Foto de arquivo pessoal
Ao fundo, do lado esquerdo de quem assiste, uma porta pendurada sinaliza a sentença. Em algum momento a mulher-girafa tenta sair, sem sucesso. O fundo é a rotunda, eu sei que não há saída e sinto desconforto com a dilatação do tempo em algumas cenas. Ainda assim, me mantenho conectada com a história. O desenho que a mulher faz do contorno de seu corpo-com-cabeça-humana na porta, já próximo ao final do espetáculo, só não é mais certeiro do que a luz do elipso 1, recortado em dois retângulos, quando ela, finalmente, retira a porta da rotunda.
A partir disso, tudo se altera, e a trilha emerge em um piano dramático. A mulher se encontra de frente ao telefone, e eu não deixo de pensar em Elza Soares e o celular para ligar 180, em “Maria da Vila Matilde”. A cabeça de girafa é retirada com cuidado. Perdeu-se. A mulher se vê no espelho, olha seu útero através da barriga. Encontra-se e se perde de vez.
A cena que segue é de um vermelho vibrante, no canto direito, à frente, é a cena da agonia da morte, um estrangulamento ou um tiro no pescoço. Curiosamente, não me desperta muita emoção - fico me perguntando por que não acabou e sinto que estou querendo dirigir ou digerir algo. Questionamentos em texto, o ápice não teria sido a retirada da porta pendurada e seu deslocar para outro espaço da cena? Ela já se foi, a mulher, elas já se foram ao longo de todo o tempo do trabalho, com o desenho do corpo na cena do crime. Fico com o choque da porta retirada suavemente de dois ganchos e que se deita sobre as costas de Ana, fechada no alçapão da cena, a lápide que a luz acende na parede e no chão. Tão simples, tão certeiro.
Espetáculo “Pelo Pescoço”, com elenco original. Foto de arquivo pessoal
Há ainda um último momento, quase como um festejo, um renascer das cinzas. Um capacete de ciclista com uma comigo-ninguém-pode, planta de poder, toma lugar na cabeça da intérprete, e o samba passa a ser o mote de uma apropriação de si, de seu corpo. O glitter nos seios, como tinta para a batalha, ela segue viva após juntar os elementos cênicos sobre a porta deitada na cena anterior. Talvez a cena tenha a ver com o desejo da direção em promover alívio para o público, para o trabalho, para a intérprete. Talvez eu me encontre com pouca esperança, no momento da escrita. Talvez seja o encontro com a memória do feminicídio, pelo pescoço, sofrido por minha amiga querida em janeiro de 2020, mas… o que é possível dizer frente ao encontro com a violência de uma morte por gênero? Há de se haver com o vazio…
De modo geral, o espetáculo é muito cuidadoso também nesse sentido. O tempo todo há movimentos que colocam o público com outras camadas de respiro, apesar da densidade do tema. Tem um lugar plástico proporcionado pela construção da cena/cenografia. Também um quê de infância nos elementos selecionados, os brinquedos podem colocar o espectador na trama do “não é de verdade” para, só então, retornar à memória do “inspirado em casos reais”.
É importante salientar que assisti ao espetáculo via vídeo, apesar de ser um trabalho que se apresenta com alguma constância. Infelizmente, sobre as produções natalenses, é sempre necessário reafirmar que aqui se produz na escassez. Os trabalhos têm temporadas curtas - há poucos espaços cênicos na cidade com bons equipamentos, há a relação com o custo de pauta, há o tempo de trabalho sem verba para administrar com a equipe. Esse espetáculo tem de ser celebrado por conseguir manter-se em movimento e em pesquisa, desde 2018. E o público pode ser agraciado com um trabalho de excelente qualidade, bem cuidado e com temática urgente.
1 Elipso: Refletor Elipsoidal, equipamento de luz que permite o recorte de desenhos da luz na cena. Os ajustes de zoom e foco ocorrem por meio do uso de lentes esféricas e de uma íris que permite ou restringe a passagem da luz.