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ALEXANDRINA

UM RELÂMPAGO de memória e ação

Correnteza Braba

Vídeo Documentário: Alexandrina - Um Relâmpago

Grupo: Grupo Picolé da Massa- Da Várzea das Artes 

País:  Brasil  (Manaus -AM)

Produção: Grupo Picolé da Massa e Abayomi Filmes

Evento: 5° Edição do Festival de Cinema da Amazônia - Olhar do Norte

Local: Teatro Amazonas, Manaus-AM-Brasil 

Assistido em agosto de 2023

FICHA TÉCNICA

Concepção e Direção: Keila Sankofa

Direção de arte: Francisco Ricardo 

Produção: Jéssica Dandara e Ythana Isis 

Roteiro: Dheik Praia e Maria do Rio Negro 

Direção de Fotografia e cor: João Paulo Machado 

Pesquisa Historiográfica: Patrícia Melo 

Montagem: Eduardo Resing 

Sound Designer e Trilha sonora: PodeSerDesligado 

Mixagem e Finalização de Som: Cláudio Lavôr (Biosphere Records Audiovisual) 

Voz Off de Alexandrina: Isabela Catão

Gravação Off: Heversong Batata

Cabelo e Assistente de Produção: Adria Praiano

Maquiagem: Bárbara Ribeiro 

Orientação de movimento: Francine Marie 

Ilustração da Alexandrina XXI: Luiz Oliveira

 

O trabalho foi produzido com recursos do  Grupo Picolé da Massa - DaVárzea das Artes e do PROGRAMA CULTURA CRIATIVA – 2020/LEI ALDIR BLANC – PRÊMIO FELICIANO LANA.

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Documentário Alexandrina - Um relâmpago. Da esquerda para direita: Adria Praiano, Jéssica Dandara, Maria Tucandeira, Keila Sankofa, Balaclavo, Mendes Auá, Francisco Ricardo. Foto de João Paulo Machado.

Minha avó - de nome Socorro Mendonça de Lima - nasceu em 1954, no município de Maraã/AM. Assim consta em seu registro, mas ela me conta que, na verdade, nasceu na Comunidade Limoeiro, às margens do rio Mapari, que há pouco descobrimos ser território da etnia Kaixana. Aos cinco anos, “desceu o rio” 1 até Tefé/AM onde gestou e criou onze filhos e filhas, uma delas minha mãe, Veruza Mendonça da Rocha, nascida em 1974. Foi neste mesmo município em que viveu Alexandrina (Sem sobrenome), um vulto histórico, uma mulher negra amazônica, filha de negros escravizados, mas que nasceu livre, trabalhando como empregada do casal Agassiz, adeptos de teorias racistas.

É da imagem da senhora Alexandrina de onde partem as fabulações para reposicionamento histórico; através da performance de corpos negros e afroindígenas na obra audiovisual “Alexandrina - um relâmpago”.

“É como se roubassem da gente, é como se cortasse um pedaço da nossa alma para colocar no papel do modo deles. Quando eles nos obriga a ficar parada para virar rabisco eles dizem que é importante, que nossa imagem vai ficar lá para sempre , eu não acho que tem essa importância toda não, para mim só vai ser bom quando eu tiver do outro lado. Só vai ser diferente quando a gente puder contar. Eles não sabem nada da gente” 2

Esse texto que inicia o trabalho, presentifica Alexandrina em todos os nossos sentidos que se abrem para receber sua presença e sua insubordinação ao desejo branku de fixar o indivíduo negro no lugar, como objeto. Das duzentas imagens de negros e indígenas do Rio de Janeiro e Manaus do século XIX, captadas pela expedição dos Agassiz, seis delas tomam conta da tela junto ao texto narrado, seis almas capturadas tomam conta da imensidão da nossa tela-corpo, do portal-coração. As seis almas de mulheres capturadas, poderiam ser minha mãe, minha avó, e mais, elas podem ser minha bisavó e tataravó, e eu estou falando de tempo cronológico ocidental... essas almas retornam e se comunicam diretamente com quem as vê, com quem as sente.

Cabelo, face, nariz, boca, OLHOS de Alexandrina foram reconstituídos em ilustração para quem ainda tinha dúvida que ela poderia retornar, e retoma sua energia vital de maneira EXUberante em oito corpos afroindígenas que guardam em suas gargantas, peitos e olhos a sede de contestar o que é de direito de Alexandrina: a memória. Um corpo de criança demarca a volta de Alexandrina à terra; afinal de contas, a filosofia yorubá nos ensina que é a criança um ancestral que acaba de retornar a esta dimensão, MARIA TUCANDEIRA, como a menina de quartinha, revela a nós o vaso sagrado feito de barro. Seu olhar não nos convida para entrar e avisa que é por nossa conta e risco o desejo de voltar. Saímos do cenário de mata, para o cinza de paredes urbanas, e rapidamente a grande cuia nos faz retornar à mata.

Keila Sankofa no filme Alexandrina. Foto de João Paulo Machado.

A obra nos guia de forma cuidadosa ao transe, ela não deixa pensar que é fácil, a obra sacode o corpo e faz a mente tremer. Por de trás da correnteza da cachoeira há realeza, coroa, tensão, nervos se comprimindo, escama de peixe, facão, sopro, seriedade, gargalhada, ambição, por trás da cachoeira olho nunca se fecha. KEILA SANKOFA como Alexandrina, DEUSA ISIS e JÉSSICA DANDARA como rainha 1 e 2, apenas com suas faces fazem sentir sede de guerrear por vitória, revelando um império de rainhas guerreiras, que usam facão, mas dominam com o olhar.


As mesmas cuias que nos guiam para a mata, para cachoeira e para a realeza de guerra, agora nos suavizam para entender a beleza na existência de uma mulher negra amazônica. Alexandrina se mostra suave e leve, ainda assim com precisão. Seu corpo está entre doze chamas de velas vermelhas e flores que enfeitam o seu orí, “batendo cabeça” 3 à força de outros tempos, girando sua longa saia vermelha, que contorna o tempo e o vento. O cenário com pouca luz, fundo e piso de madeiras, dão vazão para o corpo negro que ginga pelo espaço, sua saia constrói desenhos voando pelo tempo, como se tentasse alcançar nossas cabeças, que - seduzidas pela barra da saia - não esperariam mais que um segundo para se permitirem ser guiadas pela saia e sua gargalhada. A cena é bela, a malemolência do sabor dos vermelhos nos suaviza o coração; como todo movimento regozijante, é efêmero. A doçura ensina que uma pétala de flor e um terçado podem ter o mesmo peso, Alexandrina se debruça perante a sua imagem inebriante no espelho, a tintura de jenipapo em suas mão, o olhar fixo e as velas nos deixam enfeitiçados, na certeza de que a beleza pode ser recriada.

 Elenco da obra Alexandrina. Da esquerda para a direita:  Mendes Auá, Maria Tucandeira, Deusa Isis, Adria Praiano, Balaclavo, Francisco Ricardo, Jéssica Dandara. Foto de João Paulo Machado.

A audaciosa Alexandrina nos questiona e mostra que um galo pode ser tão venerável, quanto as singelas flores, nos levando a pensar nos agrados que a vida pode nos dar. Olhar o galo ser cuidado com preciosismo, no colo da mulher, faz pensar no alimento e na energia vital que depositamos na vida, nos caminhos, nas coisas que guiam. É preciso alimentar o caminho para uma boa passagem, é preciso ter braços fortes, olhar erguido, cabeça levantada, carregando consigo leveza e sutileza. Essa, talvez, seja um sopro-resposta de Alexandrina para nossas trajetórias. 


Em cuias, descemos o igarapé que nos leva ao encontro de uma família encantada do outro lado da margem, “Se resistimos até hoje é porque nos encontramos” 4, gerando o pensamento do encontro, como possibilidade de produção de afeto e existência de corpos negros, a família se abraça no igarapé 5, despertando memórias de afeto comum aos corpos amazonenses. Penso nos cuidados de uma família negra, nos cuidados nas famílias que podemos criar para além do traço sanguíneo e, principalmente, no encontro com nossos encantados e família espirituais que nos esperam do outro lado.

Ressurge, então, da terra, contrariando qualquer lógica do tempo, a imagem do inventor da comunicação, EXÚ. O último aviso de Alexandrina é "Não sabe? pergunte!” O que pode ser encontrado em outras sabedorias de nossos irmãos cubanos, como “Pa que tu me llamas, si tu no me conoces?”, que faz referência ao orixá Eleguá, equivalente ao Exú no candomblé brasileiro. Num limiar entre estar com e ser o jabuti, Alexandrina se mostra viva no tempo.

A existência de Alexandrina continua percorrendo os rios, que nutrem toda a Amazônia, “Sou Alexandrina e toda ciência que produzi ainda existe nas águas, na terra fértil, no poder de cada planta que nasce na Amazônia e na existência e memória dos mais velhos.” e possibilita que nosso corpos no agora se sintam encorajados a viver, a persistir.

Termo utilizado no Amazonas para se referir ao movimento de locomoção fluvial no sentido do fluxo do rio.

2 Trecho do texto original da obra.

3 Gesto da  espiritualidade afro-brasileira em demonstração de respeito.

4 Trecho do texto original da obra.

5 Termo comum no Amazonas para se referir a pequenos córregos de rio gelados e, normalmente, escondidos na mata.

 
Âncora 1
Âncora 2
Âncora 3
Âncora 4
Âncora 5
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