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Crescer ao Rés do RisKo.
No Baile, encontrar refúgio
da infeliz certeza de queTodos
Te Amam Até Você Se Assumir Preta.

Mainá Santana

Espetáculo: Fragmentos Performáticos do espetáculo Rés

Verônica Santos da Corpórea Companhia de Corpos

País: Brasil ( MG/SP)

Data: 31 de outubro de 2020

Espetáculo: RisKo

Morgana Apuama

País: Brasil (São Paulo - SP)

Data: 30 de outubro de 2020

Espetáculo: No Baile

Lilian Martins

País: Brasil (São Paulo - SP)

Data: 29 de outubro de 2020

Espetáculo: Todos Te Amam até Você Se Assumir Preta

Jéssica Madona da Coletiva 3 de nós

País: Brasil (Rio de Janeiro - RJ)

Data: 30 de outubro de 2020

As quatro obras foram gravadas ao vivo e transmitidas online, nas respectivas datas acima, nos seguintes local e evento:

Local: Kasulo – Espaço de Cultura e Arte ( São Paulo - SP)

Evento: Mulheres Em Cena 4ª Edição (Cia Fragmento de Dança)

FICHA TÉCNICA

Rés, dança, 2017

Corpórea Companhia de Corpos 

Concepção e direção: Verônica Santos

Intérpretes criadoras: Débora Marçal, Malu Avelar e Verônica Santos 

Direção musical: Melvin Santhana 

Trilha sonora: Melvin Santhana e Manassés Nóbrega

Preparação de corpo cênico: William Simplício

Provocadores: Dina Alves e William Simplício

Iluminação: Danielle Meireles

Figurino: Débora Marçal e Wellington Adélia   

Fotógrafo: Gal Oppido

Vídeo performance: Noelia Nájera

Produção executiva: UTPA

 

Espetáculo iniciado com recursos próprios da companhia, posteriormente contemplado no programa Rumos Itaú Cultural 2017-2018.

Fragmentos performáticos do espetáculo “Rés”, dança, 2020

 

Corpórea Companhia de Corpos

Direção e interpretação: Verônica Santos

FICHA TÉCNICA

RisKo, dança, 2016

 

Concepção, Direção, Dança e Light-Painting: Morgana Apuama

Registros Fotográficos Light-Painting: Ilma Guideroli e Fábio Minagawa

Video-Projeção: Padre Art

Trilha Sonora: Tiago Amorim

Iluminação: Gabriella Russo

Operação de Luz: Aline Almeida

Imagens e Edição Vídeo-teaser: Macca

Espetáculo montado com recursos próprios da artista.​

FICHA TÉCNICA

No Baile, dança, 2020

 

Concepção, Direção e Dança:  Lilian Martins 

Registro Fotográfico: Diego Dtreze

Trilha Sonora: Rubens de Oliveira e Márcio Greyk

 

Espetáculo montado com recursos próprios da artista.

FICHA TÉCNICA

Todos Te Amam até Você se Assumir Preta, teatro, 2020

 

Jéssica Madona, da Coletiva 3 de Nós 

Argumento, realização e performer: Jessica Madona

Direção: Kamilla Neves e Savina João

Preparação Corporal: Kamilla Neves

 

Espetáculo produzido com recursos do Edital Proac Expresso Lei Aldir Blanc Nº 36/2020- “Produção E Temporada De Espetáculo De Teatro Com Apresentação Online”.

Entre 29 de outubro e 03 de novembro de 2020, tive o prazer de assistir à potência de quatro artistas pretas, durante a 4ª Edição do Mulheres em Cena, organizada pela Cia Fragmento de Dança (SP)


No Kasulo Espaço de Cultura e Arte, foram apresentados os trabalhos das artistas Morgana Apuama (SP), com RisKo; Verônica Santos, da Corpórea Companhia de Corpos (SP), com fragmentos performáticos de Rés; Jéssica Madona, da Coletiva 3 de Nós (RJ), com Todos Te Amam até Você se Assumir Preta; e Lilian Martins (SP), com No Baile. Além delas, também participaram do evento mais quatro artistas: Leticia Bassit, com Cabra que Lambe Sal; Tati Caltabiano e Petit Comitê, com A Conquista de Miranda; Patrícia Noronha, com A Última Mulher do Mundo; e Bruna Betito, com V A C A. Detenho-me a escrever sobre as mulheres pretas.

Há algo que se desenha nos quatro trabalhos: a diversidade da experiência de ser preta em singularidade plural.

Os espetáculos articulam-se em uma necessidade de se expressar artisticamente, de ser vista como uma pessoa e não como um objeto, ao contar histórias cuja escuta foi evitada por séculos. As artistas jogam com estereótipos na escolha de luzes, elementos cênicos, textos e espaços de respiro, demonstrando maturidade ao compreender para quem é destinado o discurso cênico. Às vezes, torna-se nítida a necessidade de falar com aqueles que estão em posição de oprimir e silenciar; noutras, é um diálogo com pares, artistas ou não. Os espetáculos comunicam-se com pessoas negras ao tocar-lhes a identificação, possibilitando o encontro de algo íntimo e compartilhável, que nem sempre queremos olhar, apesar de precisarmos lidar dia a dia. 

 

A pluralidade nas escolhas estéticas, revela que, para além de uma mulher, uma mulher negra, uma artista, existe uma pessoa, com experiências diversas. Não perder a subjetividade de alcance, ainda que uma subjetividade pautada em um mundo árido, parece-me vital para o fortalecimento de movimentos negros, indígenas, quilombolas, entre outros. Não estamos sós. Também não somos uma grande massa que pensa igual e que vê os problemas estruturais da mesma maneira. Isso é uma construção da ordem do pensamento vigente: a cor de quem deve ser empregada, de quem deve ser patroa, de quem deve circular na parte rica das cidades, de quem pode assinar curadoria. Somos 1 a 1, em comunidade. 

 

Risko, de Morgana Apuama, arrebatou-me já na primeira cena, pelo seu maravilhoso poder de síntese. Ao desenhar uma trilha de pó branco que desce o palco até a sua borda, a artista banha-se de vermelho em contraluz, em um tempo preciso para deixar o espectador em suspensão: algo, a qualquer momento, pode acontecer. Ainda que o deslocamento aconteça, ficam os rastros de seu movimento, nessa linha tênue entre a vida e a morte; isso é, nos finalmentes, uma interpretação de quem tem a referência da tensão entre ceder, ou não, àquilo que lhe é imposto.


A dança tem um peso memorável, desde a sua matriz de movimento, pautada nas danças urbanas, passando pela conexão com a música, até o jogo com andar na linha, borrar as bordas, da precisão de cada pedaço de uma corpa engajada em seu discurso. Ao final da primeira cena, fui tomada por um profundo encontro com um pedaço de minha história, que nem sempre há espaço para revisitar. Ainda, Morgana desenha luz em movimento, com luzes em suas mãos e por meio de projeções somadas a imagens de pessoas e famílias negras, encontrando a urbanicidade e o ancestral em diálogo.

Morgana Apuama em RisKo.  Foto de Gabrie

Morgana Apuama em RisKo.
Foto de Gabriella Russo.

Os fragmentos performáticos de Rés, de Corpórea Companhia de Corpos, trazem em sua essência a problematização de outro lugar que não se olha, daquilo que muitas pessoas fingem que não existe ao viverem suas vidas: a situação de mulheres encarceradas. Antes do espetáculo, Verônica. A artista tem um poder de transmutação de si que não me espanta ter emprestado sua corpa para a pesquisa de um assunto tão sério e considerado socialmente abjeto: são muitas vozes falando em uma só. Escapando da “cara de dança contemporânea”, do distanciamento do rosto como parte da construção física, a artista transforma-se tantas vezes, ao longo dos 40 minutos de espetáculo, que é impossível não se sentir captade, desde o primeiro momento, pela firmeza na compreensão daquilo que fala.


E a pertinência do discurso é salutar: 68% das mulheres encarceradas no Brasil são negras e esse é o primeiro dado exposto em projeção durante o espetáculo. O olhar fixo no público virtual, a laranja que se espalha por todo o palco, a agilidade e o inteligente uso das repetições em partituras coreográficas dão aos fragmentos performáticos de Rés uma costura dramatúrgica dinâmica e bem-estruturada para a versão virtual. Ainda, minha apreciação de Rés toca na percepção de como subjetividades femininas negras são formadas a partir do medo e do desafio às estatísticas, números de morte e cárcere esquecidos em um recorte de jornal.

Verônica Santos em Rés . Foto de Noelia

Verônica Santos em Rés.

Foto de Noelia Nájera.

Sobre encontros de si, a partir de histórias de dor 1, o espetáculo de teatro Todos Te Amam Até Você Se Assumir Preta, da Coletiva 3 de Nós, vai direto ao ponto. Contando a história de como foi o percurso de saída da baixada fluminense à zona sul do Rio de Janeiro, a artista Jessica Madona olha no olho do público virtual e questiona a geografia das cidades e das corpas. Brincando de amarelinha, a artista vai de sua infância na baixada, passando pela nomeação de suas “amigas” brancas como Kaká, Nâna, Mah e Juh até o encontro com sua força ancestral. Jessica questiona incoerências em discursos feministas, coloca em pauta as contas de bar, pagas por ela inúmeras vezes para a “amiga” da zona sul, e costura narrativas comuns a mulheres negras que conviveram em ambientes com privilégios estruturais. 


No centro de uma roda de pessoas brancas, não entendia se o riso era dela ou com ela, típico. Seja riscando nomes marcados a giz branco na parede preta, ou lavando o seu rosto da máscara branca que vestia – o que senti ser referência a “Pele Negra, Máscaras Brancas”, do psiquiatra Frantz Fanon –, Todos Te Amam Até Você Se Assumir Preta, literalmente, desenha limites de até onde a branquitude não pode mais ir. A beleza da cena em que a artista lava o rosto pintado de branco traz não apenas a literalidade, mas um encontro com a força espiritual da própria cultura.

Em um país onde a ideia da naturalidade da miscigenação foi amplamente apregoada, o espetáculo toca, sem usar a palavra “pardo”, no lugar dúbio que muitas famílias negras enfrentam ao “ascender socialmente” (bem entre aspas, é preciso pontuar; deixo a provocação a quem me lê: o que esse termo significa para você?).

Jéssica Madona em Todos Te Amam Até Você

Jéssica Madona em Todos Te Amam Até Você Se Assumir Preta. Foto da Cia Fragmento de Dança.

Fortalecendo estéticas periféricas, No Baile coloca a artista Lilian Martins dançando com a comunidade. Desde o uso das escadas do Kasulo Espaço de Cultura e Arte, com sua corpa usando esse espaço como dramaturgia para chegar ao baile funk, até o linóleo do palco, a artista traz a precisão, o peso e a leveza articuladas entre a terra e o ar. Engajada na ação em que luzes pulsam, traz o ventre gestando sua dança, e um dos momentos marcantes é o posicionamento: “não é sensualizar, é requebrar”. Em um gesto que aponta para cabeça, relata ao público que ninguém lhe pergunta “como é que você tá?”, o que me trouxe, assim como no espetáculo da Coletiva 3 de Nós, esse lugar solitário que tantas vezes acomete a mulher negra. O figurino, recheado de palavras como “quebrada”, “baile” e “rastro”, a iluminação, os gestos e a requebrada dão a possibilidade do público de refletir sobre os estereótipos que podem trazer sobre o que é um baile funk.

Lilian Martins em No Baile. Foto de Dieg

Lilian Martins em No Baile.

Foto de Diego Dtreze.

É pulsante a importância da diversidade estética entre essas mulheres, seja nas matrizes corporais utilizadas – com danças dos orixás, danças urbanas, danças contemporâneas (como a academia entende a dança contemporânea) – na escolha dos elementos cênicos, no uso das luzes que dançam junto a suas corpas pretas. A forte musicalidade, elemento presente em todos os trabalhos, retoma danças ancestrais, ao som dos atabaques, a batida do funk, a pulsação ritmada de corpas em roda, registrando a importância de trazer a própria história e histórias das que vieram antes. 

 

Em tempo, algo muito marcante é a potência de criação de mulheres que têm em suas mãos o “controle” da imagem e dos signos que suas corpas produzem.

E as intérpretes sabem disso. Cada uma apresentou a potência de suas presenças cênicas carregadas de cuidados com toda a produção.

 

Sem sombra de dúvida, um acerto da curadoria da Cia Fragmento de Dança foi propor ainda dois dias de debates com todas as artistas participantes. Em momentos não pandêmicos, sabendo da sensibilidade da curadoria acerca do tema, anseio ver artistas negras fora do eixo de produção SP-RJ, cujas potências são tão gigantescas quanto a dessas mulheres. Vida longa ao Mulheres em Cena. Vida longa às artistas negras, periféricas, gordas, cis ou trans, com ou sem deficiência. A pluralidade e a vulnerabilidade são grandes. 

Âncora 1

 

1 Aqui me aproximo do conceito de Dororidade proposto pela intelectual feminista negra Vilma Piedade, como, em suas palavras, “a dor que se transforma em potência e, também, a dor e nem sempre delícia de se saber quem é”, complementando o conceito de sororidade.

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