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Performances do fim do mundo – Uma estética dos restos

Correnteza Braba

Performance: Uma estética dos restos

Amanara Brandão Lube

País: Brasil (Porto Velho - RO)

Assistido em Outubro de 2024

Disponível em Youtube

Período de estreia:: Março de 2021

FICHA TÉCNICA

Artista-pesquisadora, performer e produtora executiva: Amanara Brandão Lube

Edição de vídeo e divulgação: Rafaela Correia

Trilha sonora: João Belfort

 

Projeto contemplado pelo EDITAL Nº 83/2020 SEJUCEL-CODEC 1° EDIÇÃO ALEJANDRO BEDOTTI DO EDITAL DE CHAMAMENTO PÚBLICO DE FOMENTO À CULTURA PARA PESQUISA E DESENVOLVIMENTO DE EXPRESSÕES CULTURAIS. Governo do Estado de Rondônia/Secretaria dos Esportes, da Cultura e do Lazer - SECEL/Fundo Estadual de Desenvolvimento da Cultura - FEDEC/RO. Lei Federal n° 14.017/2020, Lei Aldir Blanc.

Escrevo este texto de Manaus (AM), no dia em que o Rio Negro atinge o seu menor nível da história – 12,68 metros – revelando cenários assustadores aos corpos novos e velhos que se banham, se alimentam, se criam nesse território. O imenso rio tornou-se córrego, igarapé, pequenos rastros aquosos que nos suscitam, na memória, os tempos de abundância hidrográfica, do pescar, do transitar, do fluir. “Para onde os rios vão quando morrem? 1, o vazio, instaurado dentro de nós, não consegue compreender como se dá tão rápida transformação na paisagem.  A cada ano que passa, torna-se mais complicado o malabarismo para se manter vivo nos fins do mundo, proporcionados pelas mudanças climáticas.

A fumaça de queimadas, as secas severas, a fome, o esquecimento…

os povos das margens do norte

sobrevivem ao fim do mundo todo o ano.

Enquanto são obrigados a produzir diariamente

saberes, energia, tecnologia e oxigênio para aquilo que chamam Brasil.

O Rio Madeira, parente próximo do Rio Negro, que banha a cidade de Porto Velho (RO), atingiu o nível histórico de 25 centímentros, ele possui memórias de intensas violências ao seu corpo, desde que os povos originários – que lhe preservavam – foram retirados de suas margens para dar espaço ao “progresso”. 

O Madeira acompanhou a diáspora  – de Barbados para Porto Velho – dos emigrantes que foram a mão de obra para a construção da  ferrovia Madeira-Mamoré, conhecida como “ferrovia do diabo” pelo alto número de mortes, devido às condições insalubres de trabalho, até o momento em que o Estado brasileiro não pôde mais investir na exportação de borracha e de café. Os corpos negros da Améfrica-ladina, 2 advindos de Barbados, contribuíram para a formação de Porto Velho, a cidade se construiu de costas para o Rio Madeira; e, no rio, foram construídas usinas hidrelétricas, deformando seus movimentos e paisagens, para produzir energia elétrica para todas as regiões do Brasil.

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Video-performance 1 - Uma estética dos restos. Local: margens do rio Madeira, em Porto Velho-RO.  Ano: 2021. Foto: Rafaela Correia

É neste contexto histórico que a artista-pesquisadora, Amanara Brandão Lube, tece suas criações: “Uma estética dos restos”, que se desdobra em três vídeo-performances que nos levam para um passeio ao fim do mundo. Os gestos pequenos, os movimentos simples e sem buscar a perseguida exaustão, nos aterra no agora, no momento presente com imagens do cotidiano amazônico nos gritando que o fim é já.

Na “vídeo-performance 1 - uma estética dos restos” acompanhamos imagens de margens do Rio Madeira com suas movimentações contínuas em pequenas ondulações (na Amazônia chamamos esse movimento de banzeiro), os restos de materiais despejados pelos humanos já estão lá, todo tipo de plásticos micros, pequenos e grandes descartados no madeira.

O contraste entre orgânico e sintético se estabelece

em uma batalha estética às margens do Madeira

Enquanto urubus e pombos realizam danças entre chão e ar, à procura de restos de alimentos em lixeiras viciadas na rua, na mata, na terra; a garça dança em busca de adaptação ao que conhecemos como natureza. A correnteza no meio do rio é ligeira, mas – por estar nessa beira da poluição – torna o movimento denso e pesado, ainda assim as águas seguem seu instinto “banzeriando” em uma dança de expulsão do que não é bem-vindo ali, o que não é natural ou, até mesmo, o que não é real, o que é fruto da falsificação do bem-viver.

Vídeo-performance 1 - Uma estética dos restos. Local: margens do rio Madeira, em Porto Velho-RO.  Ano: 2021. Foto: Rafaela Correia

A matéria 3 da artista chega diante de nós utilizando botas de proteção cano longo, macacão de animal print e óculos de natação, produtos que possuem fins totalmente diferentes e sem previsível harmonia do conjunto. Até onde se sustenta esse estranhamento? Afinal, estamos aqui nessa estética em que as  linhas de produção são adaptadas para as necessidades do agora. A produção excessiva do capital se estende em grandes prateleiras; as peças descartadas formam grandes montes de roupas, em desertos no Chile; 4 as classes pobres pirateiam e acessam produtos que lhe desgraçam a saúde, reunindo em seu entorno referências visuais do que o capital define como superiores, no entanto com baixa qualidade e fabricação em trabalhos análogos a escravidão.

A personagem, lidando com a nova realidade e montando seu arsenal de sobrevivência, cria estratégias e ferramentas; a performer utiliza uma rede de pesca, criada a partir de sacolas plásticas. 5, Dessa vez Amanara provoca a inteligência de espectador/espectadora para a cena, sabemos que a rede de pesca com pedaços de sacolas plásticas não teria força para segurar um peixe ou que, muito menos, este ficaria preso nos enormes espaços dela. A insuficiência, a arrogância e a prepotência humana tentam achar soluções para o fim que causou, saídas rápidas para causas profundas. Ela segue, com movimentações para jogar a rede no rio e tentar pescar algo; diversas vezes, ela realiza o movimento em diferentes direções, sem êxito algum.

Nessas criações com os restos, cria-se com o possível, e uma vez escolhe-se não utilizar o caminho da exaustão. Na criação da rede de pesca opta por uma peça pequena que nem mesmo lhe cobre todo o corpo;ainda assim nos prendemos, juntes à performer que pesca a si. O plástico criado pelo humano e descartado na natureza; a rede de pesca de plástico reutilizado; o resultado de a pesca ser o próprio corpo, é aqui onde mora o desespero. Vale lembrar as inúmeras famílias amazônicas que dependem diretamente das vidas dos rios para se alimentarem; e, anualmente, durante a seca vivem cenários desoladores de escassez de alimentos.

Se diversos filmes de ficção-científica nos lançam para 2050 para fabular o fim do mundo, Amanara nos aterra na Amazônia do tempo presente para olhar para o fim.

Frame da "Video-performance 3 - Uma estética dos restos"  Local: Porto Velho, Rondônia. Ano: 2021.

Ao fim da performance, vemos o urubu e a garça coabitando o mesmo ecossistema, a natureza vem se adaptando às decisões tomadas por aqueles que se intitulam superiores e importantes. Muitos rios – como o Negro e o Madeira -- continuam ofertando abundância e alimento; as consequências de nossas ações percebemos frente aos nossos olhos e cada vez mais intensas. O rio continua a dançar, ele está “banzeriando”; se continuarmos querendo ser humanos, o resto será nós.

1 Texto-crítico de Beto Oliveira. Disponível em: https://www.instagram.com/margemdorio/

2 Termo cunhado pela pensadora Lélia Gonzalez, para enfatizar as semelhanças entre o continente africano e a América Latina.

3 Termo utilizado para me referir ao corpo humano em alusão à sua origem natural e orgânica.

4 Referência ao descarte de roupas no deserto do Atacama pela indústria da moda. Disponível em https://gizmodo.uol.com.br/lixao-da-moda-montanha-de-roupas-no-chile-ja-e-visivel-por-satelite/#:~:text=As%20pe%C3%A7as%20de%20vestu%C3%A1rio%20que,no%20deserto%20do%20Atacama%20anualmente.

5 O objeto cênico bem como o figurino utilizados nessa vídeo-performance são provenientes  de reutilização, sendo a “rede de pesca” construída pela artista-pesquisadora, a partir de plástico descartável cotidiano.

Âncora 1
Âncora 2
Âncora 3
Âncora 4
Âncora 5
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