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Reminiscências

Luciano Tavares

Texto publicado em 22 de maio de 2025

Espetáculo: Reminiscências: memórias do nosso carnaval  


Afro-Sul Odomodê Música e Dança 


País de origem: Brasil ( Porto Alegre - RS)


Assistido em setembro de 2023. 


Local: Theatro São Pedro (Porto Alegre - Rio Grande do Sul) e no canal do Youtube (https://www.youtube.com/watch?v=0m1y7z8NKWM)


Evento: 30º Festival Internacional Porto Alegre em Cena 


Período de estreia: 2018
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FICHA TÉCNICA

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Direção geral: Maria Iara Santos Deodoro


Direção musical: Paulo Romeu
 

Registro de imagens e registros fotográficos: Luis Flávio Vitola e equipe Augusto Produção artística: Instituto Sociocultural Afro-Sul/Odomode
 

Produção executiva/ administrativa: Fernanda Pereira e Carla Souza
 

Auxiliares coreográficas: Edjana Santos Deodoro e Taila  Souza. 
 

Preparadores físicos: Gisele Mendonça, Edjana Santos Deodoro e Taila Souza 
 

Figurino: Luís Augusto Lacerda e Iara Deodoro 
 

Cenografia: Roberto Marques 
 

Trilha sonora: Paulo Romeu 
 

Direção de Palco: Thiago Pirajira 
 

Musicistas: Carine Brazil e Paulo Romeu
 

Bailarines: Alessandra Souza, Bruna Marcondes, Carla Nascimento, Deise Freitas, Edjana Deodoro, Fabiana Ribeiro, Fernanda Pereira, Gabriela Silveira, Gilian Cidade, Guilherme Miranda, Iara Deodoro, Isadora Torres, Jaqueline Jesus, Júlia Franco, Karine Guedes, Katiúscia Machado, Khadija Deodoro, Leciane Ferreira, Leonardo da Silva, Luísa Dias Rosa, Luiza Alves, Maria da Graça Penha, Marianna Conceição, Mauren Martins, Michel Silveira, Miguel Rosa, Natália Dorneles, Taila Souza, Taise Souza, Vagner Lima 
 

Crianças: Alice Martins, Caio Deodoro, Isabela Martins, Lorenzzo Martins, Marina Freitas, Murilo Deodoro, Nyashia Jesus, Pedro Henrique Freitas, Yasmin Souza Convidados: Maracatu Truvão, Grupo de Sopapo, Harmonia e Bateria Escola de Samba Realeza 
 

FINANCIAMENTO

Espetáculo realizado com recursos próprios. Produção independente com doações de amigues para composição de figurinos. (Informação fornecida por Edjana Deodoro).

 

 

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Espetáculo: Reminiscências dos tambores no corpo.


Cia de Dança Daniel Amaro

 

País de origem: Brasil ( Pelotas-RS)

 

Assistido em novembro de 2018 e agosto de 2024

 

Local: Teatro do Cidec-Sul - Universidade Federal do Rio Grande ; Sala Carlos Carvalho – Casa de Cultura Mario Quintana;  e no canal do Youtube (https://www.youtube.com/watch?v=Oqca45ygVU4&t=2482s)

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Período de estreia: 2011
 

 

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FICHA TÉCNICA
 

​Concepção e Direção: Daniel Amaro
 

Direção Artística: Daniel Amaro e Mano Amaro
 

Coreografia: Daniel Amaro
 

Iluminação: João Cruz.
 

Contra regra: Kito Borges
 

Trilha: Doudou N’adye Rose, Astor Piazzolla, Aka Mon e Doudou N’adye Rose, Güem, Edu da Matta e Jucá de Leon, Bira Reis, YoYo Man e Bob Macferrin
 

Edição de imagens: Marcelo Vergara

 

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FINANCIAMENTO

Espetáculo estreou em 2010, quando a companhia completou 10 anos, com 18 bailarines. Em 2011, foi transformada em um solo. Em ambas as ocasiões sem financiamento; somente, em 2020, obteve financiamento pela Lei Aldir Blanc. (Informação fornecida por Daniel Amaro).
 

“O que está guardado na minha gente, em mim, dorme um leve sono. E basta apenas um breve estalar de dedos, para as incontidas águas da memória jorrarem os dias de ontem sobre os dias de hoje”
(Evaristo, 2017:17).

O trecho acima – de Conceição Evaristo – me ajuda a pensar o quanto os corpos negros têm a dizer. Histórias que estão nas vivências de uma gente, gentes em diáspora, que revivem, atualizam, preservam e elevam um legado cultural. A arte, a meu ver, é a melhor maneira de expressar esse universo de saberes do corpo, em sua poética e estética. Escrevo estas linhas sobre dois territórios que se atravessam: Porto Alegre e Pelotas, lugares com que tenho certa familiaridade, em relação a produção cênica e artistas. A produção da arte negra, desses territórios, vive o agora. Ter experiências prazerosas, reflexivas, nesse contexto, é fundamental para manutenção da apreciação, do deleite, dos prazeres, dos sentires; e, assim, perceber as fruições artísticas de referências negras – importantes no campo da dança: o Afro-Sul e Daniel Amaro. Seus fazeres artísticos cruzam-se nas águas das memórias.

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O Afro-Sul, grupo de Música e Dança, foi dirigido pela matriarca, Mestra Iara Deodoro e por Paulo Romeu Deodoro, seu esposo. Este ano, 2025, o grupo completa 50 anos, criando, educando e descolonizando – para crianças, jovens e adultos – os saberes da arte da dança e da música,  da batida dos tambores, do cozinhar, do festejar. Esse é o clima do Pedaço da África no Sul do Brasil, slogan que está registrado junto ao nome do grupo no letreiro. Mestra Iara Deodoro faleceu em 2024, aos 68 anos, e nos deixou um legado imenso: sua filha, Edjana Deodoro, assumiu a direção do grupo magistralmente, junto ao pai, o Mestre Paulo Romeu. É meio século de trajetória, são muitas histórias, muitas memórias, muitos corpos pulsantes, muitos corpos dançantes.

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Nesse cenário, está o espetáculo Reminiscências: memórias do nosso Carnaval, que assisti no 30º Festival Internacional Porto Alegre em Cena, no Theatro São Pedro. Estar nesse teatro já é, em si, um acontecimento, talvez somente no meu imaginário, pois sempre foi muito difícil ver produções de dança locais naquele palco. Em cartaz, somente estavam produções de grupos e companhias consagrados no cenário nacional.

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Cena do espetáculo Reminiscências: memórias do nosso carnaval apresentado no festival “Alô, harmonia!” – Unimúsica 2023. Foto de Maciel Goelzer.

Este espetáculo foi criado, em 2018, época em que não houve desfile de Carnaval em Porto Alegre. Foi uma forma de protesto. Nós temos um instituto, o Instituto Sócio Cultural Afrosul Odomodê e, dentro dele, nós temos a Ala Afrosul que desfila no carnaval. Foi uma forma de homenagear todas as escolas que ficaram de fora do Carnaval deste ano (Fernanda Pereira, 2023).

Recordo-me de ter sentado no mezanino lateral do segundo andar, bem próximo ao camarote central, de onde possuía uma visão boa. Na primeira cena, em um telão, a imagem, em vídeo, dos primeiros carnavais de Porto Alegre com a presença do Rei Momo num festejo, falando ao microfone, para depois iniciar o desfile cênico, no palco, de tempos memoriais, nostálgicos de uma época dourada com “Ô, abre alas” de Chiquinha Gonzaga. O espetáculo é um passeio de enaltecimento, de respeito à ancestralidade, de reverência, de amor ao que as comunidades carnavalescas significam. Essa irmandade, o trabalho em colaboração, é o que mantém a união de todas as pessoas envolvidas, desde a confecção das fantasias às alegorias. Ao mesmo tempo em que compõem uma poética-estética-visual, criticam os sistemas de poder ao tensionar seus lugares de pertencimento.

A instituição sociocultural, historicamente, veio de uma escola de samba, [...], a instituição surge do carnaval. Então, não tem como, em 2018, quando se desmonta o carnaval, não se manifestar [...] (Luciane Rodrigues, 2023).

Homenagem a Leleco Telles por Mestra Iara Deodoro. Espetáculo Reminiscências: memórias do nosso carnaval. Foto de Maciel Goelzer.

Bandeiras, estandartes, batuques dos tambores, vozes fervorosas que cantam a história de um povo, dançarinas e dançarinos que – com seu gingado inebriante – hipnotizam. Mestre Paulo Romeu, na batida do seu tambor, lidera a homenagem a uma Escola de Samba, junto a outros três tamboreiros. O som que vibrava daqueles instrumentos vibrava em quem estava na plateia, fazia pulsar o corpo. O que me faz lembrar de Motrizes Culturais, um conceito criado por Zeca Ligiéro, para dizer sobre a complexidade das dinâmicas culturais dos corpos diaspóricos, no sentido de recuperar práticas ancestrais – cantar, dançar, batucar. 

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Entre cada número-homenagem, dos 23, havia uma projeção com narração empolgante, contando os tempos majestosos do Carnaval de Porto Alegre, dos bailes, dos figurinos, das ruas, das gentes, da cultura afro-brasileira. A cada coreografia, um desenho coreográfico, com efeito visual digno de uma passarela de samba. E, como todo samba-enredo, não pode faltar que os foliões cantem, mesmo não sendo na avenida e nem sendo um samba-enredo, no palco não foi diferente, dançantes cantavam e dançavam. É dança, é alegria, é samba, é folia, é rebolado, é flerte, é gingado, é movimento. São sentimentos recuperados de tempos passados em que  pessoas negras, no Quilombo do Palmares, já inauguravam essa energia nas rodas de samba 1. Um dos momentos lúdicos e poéticos do espetáculo , uma das últimas cenas, que quero destacar, é a entrada da Porta-Bandeira, Mestre Iara, cuja imagem era projetada no telão, em seu caminhar elegante, em diagonal, para homenagear o Mestre-Sala Leleco Alves, que havia dançado com ela, em um Carnaval, . “Eu danço como se estivesse dançando com ele”. Assim, em certa ocasião, ela disse. A música era tocada, e cantada, ao vivo, pelo seu esposo, Mestre Paulo Romeu, o que provocava uma carga forte emotiva.

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Para quem pensava que não existia a presença negra e a organização de um Carnaval pelas comunidades locais, desde há muito tempo bastante potentes, naquele momento pôde ter contato com um pouco da história, a partir dessa apreciação.

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Conectadas por laços, corpos, saberes, rastros ancestrais, as Reminiscências se encontram através das memórias. Essas memórias, inscritas nos corpos, inscritas nos fazeres, nos adereços, nos artefatos, nas crenças, nas danças. Nessa perspectiva, Reminiscências dos tambores do corpo, espetáculo de Daniel Amaro, representando a companhia que leva seu nome, é uma peça que gera reflexão, curiosidade, atenção.

Daniel Amaro em Reminiscências dos tambores do corpo. Foto de Volmer Perwz.

Os tambores do corpo são escrituras, são arquivos, são armas que possibilitam montar estruturas de resistências do legado cultural ancestral.

No início do espetáculo, a língua da música que abre o espetáculo não se entende; e, sim, se entendem as batidas e os ritmos dos tambores, se entendem as gentes, se entende a emoção das vozes. A iluminação e as imagens, projetadas ao fundo, criam uma paisagem visual com forte carga expressiva que se confunde com seu corpo. Olhos, ora para o corpo, ora para as imagens, ora para o espaço cênico, enchem-se de brilho refletido pela iluminação e, também, pelo olhar que vê a partir de uma série de processos internos que resultam na imagem.

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Gestos e movimentos – realizados ao sabor da sonoridade da música – se fundem. Tronco meio inclinado, torções para as laterais, braços apoiados nas costas, em movimentos repetitivos, assim como os joelhos flexíveis, dão o tom da dança: dança afro-contemporânea, pois os movimentos, os elementos cênicos e os recursos tecnológicos mesclam-se dramaturgicamente. Seus dreads esvoaçantes prolongam os movimentos da cabeça, o que traz a sensação de longitude espacial, como se saíssem flechas para várias direções.

[...] a dança para o negro é como um ritual essencial da vida, através dela revivem-se costumes, mitos, princípios iniciáticos, criam-se laços comunitários, afetivos e fala-se da vida de maneira criativa e mística (Conrado, 2006:19).

Reminiscências dos tambores do corpo na participação do Festival Palco Giratório que aconteceu na Sala Álvaro Moreira. Foto de divulgação de Maciel Goelzer.

Lugares, pessoas, vestimentas, objetos, jeitos de ser, contextos ao modo africano e em território africano, do povo africano, nos mostram as projeções. No palco, um homem negro, atravessado sentimental e espiritualmente por pertencimentos que são nossos, alude poética-criticamente sobre o sequestro de nossos antepassados. Aí vem a pergunta a que não há resposta. Quem de nós, pessoas negras, sabe de onde veio? Quem são nossos ancestrais da quarta geração, por exemplo? Por sorte, talvez alguém saiba, mas não é o que, normalmente, acontece.

 

Os pelos dos meus braços se levantam; um sentimento de algo grandioso, algo pulsante reverbera dentro de mim, ao ver, escutar e sentir uma orquestra de tambores numa unicidade rítmica hipnotizante, por instantes apenas. A movimentação de Daniel se funde, em meio à vibrante sonoridade, com qualidades particulares de movimentar-se e gesticular. Num dado momento, ele acende uma vela para sua entidade protetora e pede a sua benção; e, assim, sua iluminação oscilante, junto à  iluminação cênica, o acompanha até o final do espetáculo.

A mescla de linguagens artísticas, dentro do espetáculo, como o audiovisual, marca a quebra de hierarquias, em que nenhum elemento é mais importante que o outro; e, sim, agem em paridade.

Traços característicos da contemporaneidade na arte. Nesse jogo, dancístico, sonoro e imagético, a exploração da espacialidade, a todo o momento, ganha vigor ao ser transpassada pela iluminação cênica que cria ambientes quentes, abertos, fechados. Por vezes, sua sombra traz outra perspectiva do corpo, criando uma virtualidade em que o real se configura noutro espaço tempo.

 

As reminiscências, aqui, fazem um reviver do passado (posto no presente), atualizado nas inscrições dos tambores personificados nos ritmos, nos pulsos, nas vibrações corporais. Pois é no corpo onde tudo acontece, pois a presença corpórea negra, em si, é uma forma crítica de estar no mundo; seja (re)vivendo o carnaval, seja afetando e sendo afetado pelas ondas sonoras percussivas dos tantãs. Nessa trama espiral da memória, os encontros dessas reminiscências têm o paladar apurado em enaltecer uma cultura que é nossa e das nossas ancestralidades

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REFERÊNCIAS

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EVARISTO, Conceição. Histórias de leves enganos e parecenças. 5. ed. Rio de Janeiro: Malê, 2017.

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CONRADO, Amélia Vitória de Souza. Dança étnica afro-baiana: educação, arte e movimento. In: SIQUEIRA, Maria de Lourdes. Imagens negras: ancestralidade, diversidade e educação. Belo Horizonte: Mazza, 2006.

 

LIGIÉRO, Zeca. Corpo a corpo: estudo das performances brasileiras. Rio de Janeiro: Garamond, 2011.

 

PEREIRA, Fernanda. Reminiscências: memórias do nosso carnaval. Entrevistada: Fernanda Pereira. UFRGS TV. Porto Alegre, 2023. (12 min 47 seg). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=0m1y7z8NKWM. Acesso em: 14.abr.2025.

 

RODRIGUES, Luciane. Reminiscências: memórias do nosso carnaval. Entrevistada: Fernanda Pereira. UFRGS TV. Porto Alegre, 2023. (13 min 10 seg). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=0m1y7z8NKWM. Acesso em: 14.abr.2025.

 

SODRÉ, Muniz. Samba: o dono do corpo. 2 ed. Rio de Janeiro: Mauad, 1998.

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1 SODRÉ, Muniz. Samba: o dono do corpo. 2 ed. Rio de Janeiro: Mauad, 1998.

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