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Um mundo a se revelar

Igor Lopes

Performance: Errar é Urbano
Evento: Sarau Reduto
Local: Espaço Reduto Coletivo,
Surubim-PE, Brasil. 

Vídeos artes: Caro Sistema e Prosa Marginal
Onde : Youtube, Instagram


Tayná Lima
País: Brasil ( Surubim-PE)

Assistidos em novembro de 2022
 

FICHA TÉCNICA


Direção: Tayná Lima 
Poemas e textos: Tayná Lima 
Performance: Tayná Lima 
Direção cinematográfica: Tayná Lima 


A performance “Errar é Urbano” e o vídeo arte “Caro Sistema” foram  produzidos com recursos próprios da artista Tayná Lima. O vídeo arte “Prosa Marginal” foi produzido com apoio da TV PE através do edital Comunicadores Sociais de PE e com recurso financeiro da Lei Aldir Blanc.

Ressalto como primeiro ponto, que não há possibilidade de falar da poética de Tayná Lima sem falar da cidade; não há como desvencilhar a poesia das narrativas de opressão que o urbano desenha ou finca na madeira, como uma xilogravura que carimba sempre as mesmas injustiças. A cidade de Surubim fica localizada no agreste setentrional de Pernambuco, e é conhecida como “Capital da Vaquejada” (1937). A festa é de domínio público, pertence ao interior do nordeste, e aconteceu primeiro ali. Transformou uma atividade localizada em ícone de uma região, de um estilo de vida e criou um formato consagrado, um modelo copiado por todo nordeste.

É terra de grandes artistas e de um movimento cultural e artístico diverso, com produções potentes de grupos e artistas. As referências artísticas surubinenses vão desde Capiba e Chacrinha, dois dos maiores artistas brasileiros do séc. XX, até a banda de heavy metal Hanagorik, uma das maiores referências do rock brasileiro nos anos 1990 e inspira até hoje a atual e efervescente cena de rock da região. 

A cultura da Vaquejada e a referência de bandas de rock - que teoricamente são opostas nas vivências propostas ("conservadoras" x "progressistas") - são estruturas que não sustentam os discursos na cidade de Surubim, até porque o rural e o urbano se misturam constantemente. Novos prédios vão aparecendo, na imagem da região; e, nas ruas, continuam a passar boiadas. Com isso, a proposta poética de vários artistas encaminha-se na relação entre o rural e urbano, dada a falta de políticas públicas e sua irresponsabilidade diante de uma sociedade em decomposição, que não consegue mais se ver como rural (e não se enxerga em sua completude urbana).

Escolho aqui falar do trabalho poético de Tayná Lima, cujas gravações de vídeos, feitas com poucos recursos, ressaltam ainda mais a potência de sua fala diante da precariedade em que se encontram os artistas da cidade. Também expressam um verdadeiro resumo das mazelas de uma cidade que não respeita seus artistas, ainda se mantém coronelista, atravessada por questões de direitos básicos e racismo ambiental, que afetam principalmente a população preta, periférica e indígena no nosso contexto urbano e rural.

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Intervenção de Tayná Lima no Sarau Reduto, 2022. Foto: Danilo Leal
O tema de sua poética gira em torno da vida nas periferias do interior de Pernambuco com ênfase nas experiências de discriminação da pobreza e das violências - oriundas de repressões e falta de acessos básicos. Tayná Lima não tem medo de explicitar as verdades duras de sua vida e de sua comunidade. Como a própria artista afirma “a cidade é puramente uma crise estética”, e é a partir dessa crise que ela constrói suas narrativas e pesquisas sobre a territorialidade, explicitando em seu trabalho a tensão do conflito entre o urbano que se constrói em cima da mata; que muda o curso de um rio; que intervém através do extrativismo, da exploração e da destruição do nosso bioma. Esse conflito, junto ao resgate da memória, parece deslocar o tempo-espaço e cria uma nova tensão entre o ficcional e o não ficcional.1
Performance “Errar é Urbano”, com Tayná Lima, no Sarau Reduto, 2022.
Foto: Danilo Leal
Quais sintomas a tensão constante desse conflito causa na construção da nossa subjetividade? Como e até que ponto a crise estética urbana interfere nas nossas relações intra e interpessoais? Na forma como amamos, nos relacionamos, nos entendemos e na forma como nos propomos existir? Como sobreviver à necropolítica? Através da arte transgressora, em uma cidade sem políticas públicas e aparelhos culturais? Como resgatar a memória de uma cidade ainda guinada pelo coronelismo, com índice expressivo de latifúndios urbanos - vulgo loteamentos - que estão nas mãos das mesmas famílias dos antigos coronéis?
Tayná Lima em Prosa Marginal, TV Pernambuco, 2022. 2
É através desses questionamentos e angústias constantes, que a revolta transborda em várias linguagens artísticas, seja na poesia, em videoartes caseiros 3, performances e no teatro, que são instrumentos de expressão de Tayná para pôr luz sobre as violências, o medo e o alerta constante que a cidade imprime em nossos corpos. Os vídeos de Tayná não têm títulos, muitas vezes, por sua poesia ser marginal, o fato de não nomeá-los é a afirmação de que são indigentes, o que não ocorre com a performance  "Errar é Urbano" e o teatro "Ópera D’água". Assim como a poesia marginal, os poemas e os versos de Tayná propõem uma crítica ao conservadorismo e ao coronelismo, servindo também de denúncia das representações de violência e abusos diários que a população preta e periférica é obrigada a passar por falta de políticas públicas eficazes.
Tayná Lima no espetáculo “Ópera D’água”, Janeiro de Grandes Espetáculos, 2021.
Foto: Thiago Farias Neves
Já um pouco distanciado no tempo e no espaço, eis-me aqui sentado em minha sala, lugar onde estudo, reflito e produzo meus textos; a partir do qual escrevo sobre os vídeos denúncias e performances de minha amiga poeta, dramaturga e atriz, tendo o privilégio de apresentar nestas linhas as minhas mais profundas impressões de suas potentes licenças poéticas. Como escracha nesse poema:

mire a chama acesa que escorre em minha face

sob as rugas o disfarce do tempo que ainda não passou mas corre

se escorre e se esvai

como vento mudo que ensurdece em conta gota a  estridente prece 

que pinga no alumínio feito pedra

sal a pino no quengo mole que derrete com mormaço

escoando no ouvido surdo velando o absurdo da violência escrachada 

o não silêncio dos prédios grita grita grita

a pressa na rua que cobra até a sombra que se consome

corre corre coooorreee

que essa bala é pra você

suor concreto bate mais forte

já não parece inocente contar com a sorte se ela é a única coisa que resta

passos lentos caminhada ouço vozes em marcha não querendo se esconder

mira a chama acesa que escorre em minha face renova purifica finca

não se esconde nem foge de novo

olha a chama acesa no olho

e veja o reflexo de uma cidade inteira pegando fogo

Tayná Lima

Como decodificar as "metáforas" de sua poética? Como entrecruzar os aspectos relacionados com o "real" e o "ficcional"? Será que existe de fato ficção? Quais as urgências que estão por detrás do subtexto? Uma distopia que cada vez mais transborda dos vídeos com riscos presentes de essa ameaça se tornar para além do real, ainda mais perversa. Uma poética que é tão costurada à realidade que transita entre o ficcional e o não ficcional, nos fazendo perguntar como o corpo tão íntimo, tão pessoal e tão simples, poderia ser de qualquer espectador. É uma identificação individual, e sobretudo coletiva, que guia uma experiência imersiva dentro de suas imagens poéticas, nos impulsionando à tensão, ao medo, ao alerta e à revolta, buscando sempre o afeto, como uma possibilidade de (r)existência.

que o amor seja leve como uma pena que sutilmente acaricia o ar

que tenha todo o pulmão para respirar

que não seja posse, nem ferida profunda

que não seja o que te emerge e depois te afunda

que o amor seja o toque sutil que finca na alma

invadindo os flancos, pedindo licença

que te dê calma

que seja um lugar seguro já que temos pouca ajuda

que não seja colônia, mas que seja quilombo, aldeia, rota de fuga

cada um com seu espelho, olhando para si, mas vendo o mundo inteiro

que o amor não complete, só faça transbordar

para que cada um tenha o direito de saber a delícia que é se

e s p a l h a r

Tayná Lima

As possíveis respostas são trabalhadas nos textos de denúncias e que, por sua vez, estão em forma de provocações que propiciam ao espectador  poder se ver representado por meio de falas e imagens, estabelecendo as próprias reflexões. Em meio a esse cenário turvo, o grande agravante disso tudo desemboca no descaso social, não desvencilhando a arte da sua função política de existir, buscando através da expressão; liberdade, buscando através da arte, justiça.

É impossível ficar indiferente à presença corporal, seja nas performances ou no recorte dos seus vídeos, pois todas as palavras de sua poética cortam como navalha a carne do ar. E como uma retratista revela as entranhas de sua cidade, carrega sua obra no corpo e sopra como um calafrio no pescoço dos desavisados. Criadora e defensora de uma poesia que mora no próprio corpo e que não nega a sua história.  Tayná é corpo, mata, rua, cidade e um mundo a se revelar.

Evoé!!!!!!

Epahey Oyá!!!!!!

1 Ver o vídeo arte “Caro Sistema” que está Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=b_BUIqY5Cjg

2 Foto e Vídeo: Danilo Leal. Disponível em: https://www.instagram.com/tv/CZaJ1AWD_wi/?igshid=MzRlODBiNWFlZA==

3 Videoarte, disponível em: https://www.instagram.com/reel/CuPZ699NrPe/?igshid=MzRlODBiNFlZA==
Âncora 1
Âncora 2
Âncora 3
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