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6 danças para Imaginários possíveis - Camarão Crew

Mainá Santana

Espetáculo: 6 Danças Para 1 Fuga (2022)
Camarão Crew

País: Brasil ( Natal - RN)


Assistido em 03.12.2022


Estreia em 03.12.2022

Local: Espaço a3, Ribeira, Natal-RN – Brasil

FICHA TÉCNICA

Direção de Movimento: Willy Helm
Elenco: Flávio Madruga Leandro, Josa Emanuel, Michael Skimó Stefferson
Coreografia: Willy Helm e Camarão Crew
Figurino: Todos
Cenografia: Todos
Técnica de Luz: Cléo Morais
Fotos: Willy Helm, Ariane Mondo e Gênesis Rodrigues
Teaser: Gênesis Rodrigues
Vozes In Off: Mainá Santana, Pedro Queiroga e Willy Helm
Músicas de Trilha Sonora: Peças para Violão Solo de Johann Sebastian Bach 
BWV1003 Andante - Mathew McAllister
BWV1001 Presto - Ajaz Cvirn
BWV1008 Prelude - Isabella Selder
BWV1003 Fuge - Zsombor Sidoo
BWV1034 Allegro - Natalia Lipnitskaya
BWV1003 Allegro - Xingye Li
Montagem de Trilha Sonora: Willy Helm
Produção: Mainá Santana
Assessoria de Imprensa: Ariane Mondo

Arte Gráfica e Mídias Sociais: Marina Liberta
Realização: Willy Helm e Camarão Crew
Parceiros: Sociedade T, Espaço A3, DEArt - UFRN
Apoio Cultural: Academia CTC, Only Skateshop, Grupo Facetas
Apoio: Sebrae RN

 

 

Espetáculo Produzido com recursos oriundos do Edital de Economia Criativa do SEBRAE-RN
 

Foi a primeira vez que a mãe de Josa foi a um teatro. O teatro, Espaço a3 1, é o que eu chamaria de espaço alternativo, bem cuidado, apesar dos poucos recursos financeiros. Essa frase “poucos recursos financeiros” é o ritmo no qual a dança sobrevive em Natal. O edital de captação direta de maior valor custa os míseros e bem-vindos R$ 10.000,00, pagos pelo SEBRAE-RN. Aqui, a dança precisa se reinventar, passar em muitas audições para juntar dinheiro e produzir espetáculos. Ou captar parceiros, cheia de bolhas nos pés de tanto caminhar.

Tem algo em meu coração que se despedaça a cada vez que eu constato essa realidade, especialmente em relação a danças de matrizes afrodiaspóricas. Na cidade, é mínima a perspectiva de continuidade de grupos independentes; “pesquisa em dança” é algo quase insustentável. Diz-se em certos meios que a presença do curso de Licenciatura em Dança, na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), fez com que as pessoas dançassem menos. Há muito (muito) ressentimento e muita história de politicagem, muito esforço de atores solitários, por vezes encampando bandeiras próprias, segundo suas consciências e na melhor das intenções. Outras vezes, com intenções nem tão boas assim.

É na periferia de tanto contrassenso que os B-Boys do Camarão Crew sonham em viver de dança. E seu sonho, guarda-chuva de tantos sentimentos, sensações, de tamanha e justa raiva, organiza-se em uma sala emprestada de uma academia de boxe e outras modalidades, a CTC 2. O bairro é Felipe Camarão, na zona oeste de Natal, e o nome da Crew demarca sua territorialidade, carregando o espaço, onde os dançantes foram criados e produzem, desde a criação do grupo 3

Josa Emanuel, o único com graduação completa até a materialização deste texto, é professor na Academia CTC e é na parceria que treinam três vezes na semana, todas as semanas; às vezes juntos, outras, separados. Breaking, mais recentemente dança contemporânea… certas fronteiras são borradas nesse espaço, forrado por E.V.A., paredes recapeadas e afeto de toda sorte. Aliás, boa parte das ações do grupo sustentam-se via parceria. Uma loja de artigos para skatistas, a Only Skateshop patrocina ou fornece apoio cultural, em troca da presença da Crew em eventos de skate. Além disso, a loja realiza permutas com outros atletas com habilidades diversas, colocando-os em contato para parcerias em seu nome.

Completam a Crew, Skimó, Flávio Madruga e Zaiko, que atualmente mora na França. Michael Skimó Stefferson dança com o Camarão, com a Movidos 4 e estuda Licenciatura em Dança na UFRN. Ele e Josa são homens negros de pele clara; Zaiko, de pele retinta. Flávio Madruga Leandro é B-Boy do Camarão, pai de um menino de 4 anos e gari, trabalhando nos caminhões de limpeza da cidade. Todos estão juntos desde a fundação da Crew, em janeiro de 2017, mas já tinham uma trajetória em breaking, seja por grupos anteriores, ou por treinos em locais pela cidade 5.

O trabalho que trago para diálogo é “6 Danças para 1 Fuga”, uma parceria do Camarão Crew com o artista potiguar Willy Helm 6. O espetáculo fez parte das ações do projeto “O Bach do Camarão”, aprovado no Edital de Economia Criativa do SEBRAE-RN (2022). Unindo a musicalidade do músico barroco Johann Sebastian Bach com a fisicalidade dos B-Boys, a montagem aborda as conexões entre os artistas do Camarão Crew e suas realidades, propondo espaços de diálogo e criação ao aproximar um modo de dança periférica a alguns espaços da dança contemporânea reconhecida na cidade.

 

Em algum desses espaços, circula um discurso sobre o fazer desses homens, carregado de romantização – recorrente entre fazeres de pessoas pretas e/ou periféricas. Em uma roda de conversa na UFRN, por desconhecimento ou apagamento, ouvi dizer que o que eles fazem é inédito no Brasil. Seria lindo se não fossem conhecidos grupos como Fragmento Urbano 7, Zumb.Boys 8, em São Paulo; Grupo de Rua 9, no Rio de Janeiro, entre tantos outros que eu desconheço. Nitidamente, sim, seu fazer é inédito, pois são quem são e seu fazer artístico  conecta-se profundamente com sua história. Viva a pluralidade dos sujeitos pretos e periféricos! Só que não é inédito juntar dança contemporânea com breaking, locking, popping e tantas outras.
 

A utilidade dessa comparação me soa como um incentivo ingênuo, com o potencial de fomentar uma solidão inexistente, ao cortar do imaginário da Crew possíveis laços de admiração, pesquisa e articulação entre pares.

Ensaio geral, antes da estreia, da obra “6 Danças para 1 Fuga”. Registro realizado por Gênesis Rodrigues. 

De criação coletiva, “6 Danças para 1 Fuga” traz três solos, dois duetos e um trio, com músicas do compositor alemão, cuja dramaturgia orienta-se pela trilha sonora. O espetáculo tem o som de uma panela de pressão como base, justapondo os relatos produzidos no processo de criação com as músicas de Bach para violão solo, escolhidas pelos integrantes do Camarão Crew. A montagem da trilha ficou por Willy Helm, que também assume a direção de movimento. A luz, quem opera é Cléo Morais, assim como em “Nada Como Antes o Quê?”, trabalho anterior da Crew. Cléo, potiguar, mulher preta e empreendedora de si, está acostumada com a escassez desses espaços e cria soluções simples com resultados impactantes – vale um texto completo sobre seu trabalho como iluminadora de dança e de teatro, seja para telas ou presencial. 


O trio tem o corpo brincante, a “tiração de onda”, a compactação e o gingado do breaking. Parte em Canon 10, tão presente na obra de Bach, confere a constatação das nuances que cada um pode trazer para um mesmo movimento. E, nitidamente, a batalha. Aqui fica muito evidente toda a matriz de movimento, de pensamento, de sensação que o grupo traz e que, generosamente, compartilha com Willy. E ele, do mesmo modo generoso, apesar de estar em posição de organizar o material levantado, abre mão do controle e atua muitas vezes como um observador das decisões da Crew. Na assimetria das relações construídas com Willy, as diferenças não são apagadas, nem a de idade, nem a de classe social, nem a de cor. Tudo é trazido à baila pelos integrantes, como mote de criação, de discussão e de sensibilização, o que certamente não foi indolor.

Há um dueto belíssimo, diretamente conectado com uma das histórias trazidas por esses homens da dança; a troca de apoios, sustentação de vida e morte, muita maciez e delicadeza em contar um relato de dor. O áudio revela o diálogo entre dois parceiros, um deles não vê possibilidade senão se manter no tráfico, para cuidar de sua família. Ainda que por um tempo curto. Ainda que no longo prazo não esteja mais ali, no futuro. O interlocutor aconselha-o, em tom firme e doce, a se desligar. A escolha é rasgante, e o dueto também: os homens escolheram ainda uma das músicas, em minha opinião, mais bonitas do espetáculo. Singela e penetrante. Caminhando em oito apoios, seus corpos se entrelaçam em um, como dois irmãos que compartilham uma trajetória desejante de proteger os seus, até escolherem caminhos diferentes. 


Falando em criação de imaginário para jovens periféricos, um ponto e convergência na história dos três integrantes da Crew é a relação com um filme de DVD, o “Red Bull BC One Berlin 2005” 11. Nenhum deles sabia o que era exatamente breaking, e mesmo antes de conhecerem o DVD, Josa, Flavio e Skimó já estavam inseridos na cultura hip hop. Flávio me conta que, em parte da vida, treinou com os irmãos “onde tivesse um chão”: da calçada do vizinho até a obra parada de um CEU levando seu boombox - uma caixa de som a pilhas grandes. Era uma necessidade. A aprendizagem por imitação, nesse caso, vem recheada de sentido, pois não é apenas sobre movimento, mas também sobre modo de fazer que retoma os que vieram antes ao lidar com as adversidades, com a batalha em si. Tem algo que ressoa e comunica, instigando esses homens a colocar seu corpo à prova: é preciso se expressar, fazer algo sobre si, sobre sua realidade, extravasando o que borbulha e surpreendendo-se  com a sua capacidade de movimento e de dizer algo sobre o mundo ao redor. Nesse aspecto, usar camisetas do time brasileiro de futebol como escolha de figurino, toca no ponto da copa (“patriozismo”) e de toda a representação que uma camisa da CBF trazia no Brasil de 2022 (“nossa bandeira jamais será vermelha” e outras groselhagens de golpistas invasores do congresso nacional 12). Os sentidos se desenham não apenas para bons entendedores: o posicionamento é nítido, sem ser banal.

Deixo um exercício de imaginação a quem me lê: que outros sujeitos seriam, que outras oportunidades teriam, se esses homens tivessem conhecido, nomeado, testado o breaking desde crianças, se tivessem o apoio e o estímulo para assim se expressarem desde cedo? Ao mesmo tempo, como é importante ressaltar o percurso e a firmeza desses B-Boys em encontrarem e engajarem-se na dança, apesar do racismo estrutural que permeou suas vidas. Josa me conta que é no breaking que ele toma decisões pessoais, dançando; para Flávio, o breaking é a saída de uma realidade com muitas injustiças, num momento apenas dele, com o chão e a música. Michel deseja o reconhecimento de referenciais técnicos plurais, em espaços acadêmicos e em companhias pela cidade. Nos relatos registrados em documentário de processo, é perceptível o estado performático em que entram, quando dançam. Presença, necessidade e precisão.

Ensaio geral, antes da estreia, da obra “6 Danças para 1 Fuga”. Registro realizado por Gênesis Rodrigues. 

1 O Espaço a3 abriga para espetáculos de pequeno porte, oficinas, ensaios, montagens coreográficas e cênicas no bairro da Ribeira, em Natal-RN, desde 2014. Disponível em: https://a3espacoartistico.wordpress.com. Acesso em: 23 mar 2023.

2 De acordo com informações de rede social. Disponível em: https://www.instagram.com/ctcacademia_oficial. Acesso em 23 mar 2023.

É interessante a sonoridade proposta pelo nome Camarão Crew – krill é o nome de um peixinho bem semelhante a um camarão; o nome do bairro, que origina o nome do grupo, é homenagem a uma figura histórica, Felipe Camarão, um homem indígena Potiguara (“comedores de camarão”, da família linguística Tupi-Guarani) que lutou contra os holandeses na época das invasões neerlandesas. Vale a leitura sobre os Potiguaras, disponível em: Potiguara - Povos Indígenas no Brasil. E sobre a figura histórica Felipe Camarão, em:  https://revistacenarium.com.br/cartas-do-seculo-17-sao-traduzidas-e-revelam-unicos-textos-escritos-por-indigenas-no-brasil-colonial/. Acessos em 23 mar 2023. 

4 Movidos é um grupo de dança contemporânea que trabalha com corpos diversos, sediado em Natal/RN. Dados disponíveis em: https://www.movidosdanca.com/. Acesso em 23 mar 2023.

A título de memória, alguns locais de treino: Igreja dos Mórmons, Memorial de Capoeira, Estação de Trem, todos em Cidade Nova, Zona Oeste de Natal-RN. 

6 Willy Helm também é diretor do GRUA – Gentlemen de Rua. Disponível em: https://grua.gr/. Acesso em: 23 mar 2023.

7 Fragmento Urbano, de direção de Douglas Iesus e Anelise Mayumi, conhecemos um pouco de seu percurso nesta escrita de okan, disponível em: Esquina-Esquiva-Esquerda | ArquivosdeOkan, Acesso em: 23 mar 2023,

Grupo Zumb.Boys, fundado em 2003, vivenciando a cultura hip hop/dança urbana. A partir de 2007 foi mudando seu foco de ação de acordo com vivências e necessidades, de acordo com informações disponíveis em: https://www.zumbboys.com/untitled, Acesso em 23 mar 2023.

9 O Grupo de Rua de Niterói (GRN) foi fundado em 1996, pelos artistas Bruno Beltrão e Rodrigo Bernardi. O grupo participou de competições de dança, festivais e programas de televisão, trabalhando dentro do universo do hip hop e da dança de rua. Em 2000, Bruno levou para a companhia a ideia de reler o hip-hop, disponível em: Grupo de Rua de Niterói. Acesso em 23 mar 2023.

10 Canon ou cânone musical é uma voz que se repete com um intervalo de tempo; na dança, é um movimento repetido por três ou mais dançarinos, com um pequeno atraso entre um e outro. J.S. Bach foi um dos precursores desse tipo de recurso, em música europeia.

11 Red Bull BC One é uma competição de B-Boys e B-Girls, promovida pela empresa Red Bull desde 2004. Este DVD apresenta atletas dançantes de vários locais do mundo, inclusive do Brasil, com Pelezinho, que hoje atua também como jurado da mesma competição. Link para Red Bull BC One Berlin 2005, o DVD a que os integrantes do Camarão Crew assistiram está disponível em,: https://www.youtube.com/watch?v=i2o6iKa84GE Acesso em 23 mar 2023. 

12 Disponível em : Golpistas invadem Congresso, Palácio do Planalto e Supremo | Nexo Jornal.  Acesso em 23 mar 2023.

14 Atualmente, na região metropolitana, temos o Teatro Alberto Maranhão (o TAM, em Natal), recém-reinaugurado após seis anos de portas fechadas; e o palco do Cine Teatro Municipal de Parnamirim (em Parnamirim), com infiltrações, após reforma e uma interdição que possivelmente durará o tempo de reforma do TAM, ou o tempo do desejo político. 

Âncora 1
Âncora 2
Âncora 3
Âncora 4
Âncora 5
Âncora 6
Âncora 7
Âncora 8
Âncora 9
Âncora 10
Âncora 11
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Âncora 13

Aliás, nos solos, essas qualidades estão presentes, junto às experiências do corpo da rua, do jogo, do axé, do forró, da capoeira, que se condensa próximo ao centro e desliza pelo chão compactado, ou voa, brincando com as pernas para cima. Nas batalhas, a energia utilizada é muita e não há espaço para a sobra: um tiro, um jato, segundos para mostrar o que existe de mais interessante para você mesmo. Dilatando o tempo nas improvisações dos solos, os B-Boys trazem toda essa história de corpo, como um respiro frente à exaustão. 


Assistir ao Camarão Crew me provoca inquietações em forma de teia e novelo. Ter a possibilidade de conhecê-los um pouco mais, ao realizar a produção de seu trabalho, foi como olhar com uma lupa as questões da dança no estado do Rio Grande do Norte e na cidade do Natal. Muita criatividade, muita liberdade de criação, limites entre linguagem, borrados e ralos recursos financeiros, com pouquíssimos espaços formais para apresentação 14. Seria lindo que a mãe de Josa e todos os seus familiares pudessem ter a oportunidade de sentar num teatro com todos os recursos tecnológicos de iluminação, som, cenografia, para apreciar o talento do filho. Mesmo que eles não queiram isso para si: o imaginário e a noção de pertencimento precisam existir. Afinal, são pessoas com responsabilidades sobre si e familiares, artistas e atletas, ainda que esse título lhes seja negado dia após dia. Ensaio após ensaio.

Espero com este texto ter contribuído para sua memória em contexto nacional, para que o mundo saiba: aqui, em Natal, no Rio Grande do Norte, há um grupo de breaking com potência gigantesca resistindo e expandindo. Eles são o Camarão Crew.

Âncora 14
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